7.9.11

Estrada Para a Consciência*

Postado por Marcus Vinicius Alves |


A seca durava já havia dez milhões de anos, e o reino dos terríveis lagartos terminara muito tempo atrás. No equador, no continente a que um dia se chamaria África, a batalha pela existência atingira um novo clímax de ferocidade, e o vencedor ainda não estava à vista. Naquela terra árida e seca, só os pequenos, os velozes ou os destemidos, conseguiam florescer ou até esperar sobreviver.

Os homens-macacos da savana não eram nada disto, e não estavam a florescer; aliás, já iam bem avançados na estrada para a extinção racial. Cerca de cinquenta deles ocupavam um grupo de cavernas sobranceiras a um valezinho ressequido, dividido por um rio parado, alimentado pelas neves das montanhas que ficavam a trezentos quilômetros para norte. Quando os tempos eram maus, o rio desaparecia completamente, e a tribo vivia à sombra da sede.
Tinham sempre fome, mas, naquela altura, quase morriam de inanição.

Quando a primeira e débil luz da madrugada entrou na caverna, Sentinela-da-Lua viu que o seu pai havia morrido durante a noite. Não sabia que o Velho era seu pai, pois tal relação estava muito para lá da sua compreensão, mas, ao olhar para o corpo magro, sentiu uma leve inquietação, antepassada da tristeza.

As duas crias já estavam a choramingar pedindo comida, mas calaram-se quando Sentinela-da-Lua lhes rosnou. Defendendo o bebé que não podia alimentar em condições, uma das mães devolveu-lhe um rugido zangado; mas ele nem sequer tinha energia para espancá-la pelo seu atrevimento.

Já fazia luz suficiente para partir. Sentinela-da-Lua pegou no cadáver enrugado e, inclinando-se, arrastou-o para a entrada da caverna. Uma vez no exterior, atirou o corpo para cima das costas e endireitou-se, único animal do mundo capaz de fazê-lo.

Entre os da sua espécie, Sentinela-da-Lua era quase um gigante. Tinha cerca de um metro e meio de altura, e, embora extremamente subalimentado, pesava mais de quarenta e cinco quilos. O seu corpo peludo e musculado estava a meio caminho entre o macaco e o homem, mas a sua cabeça encontrava-se já muito mais próxima do homem do que do macaco. A testa era baixa, e apresentava saliências por cima dos olhos, mas transportava inegavelmente nos seus genes a promessa de humanidade. Quando contemplava o hostil mundo do Plistoceno, o seu olhar continha já algo que ultrapassava as capacidades de um macaco. Naqueles olhos escuros e profundos lia-se o despertar de uma consciência - os primeiros sinais de uma inteligência que não poderia cumprir-se ainda por muito tempo, e que em breve talvez se extinguisse para sempre.

Como não havia sinal de perigo, Sentinela-da-Lua, ligeiramente embaraçado pelo seu fardo, começou a descer a encosta quase vertical que dava para a caverna. Como se houvessem estado à espera do seu sinal, os outros membros da tribo saíram dos seus lares, bastante mais abaixo na superfície rochosa, e dirigiram-se para as águas lamacentas do rio, para a primeira bebida da manhã.
Sentinela-da-Lua observou o outro lado do vale, tentando observar os Outros, mas eles não estavam à vista. Como não se viam, Sentinela-da-Lua esqueceu-os; era incapaz de ter em mente algo por muito tempo, ou mesmo focar a atenção em mais de uma coisa ao mesmo tempo.

Primeiro, tinha de se desembaraçar do Velho - não era problema em que precisasse pensar muito. Houvera muitas mortes naquela estação, uma delas na sua própria caverna; bastar-lhe-ia abandonar o corpo no sitio onde pusera o novo bebê, no último quarto da lua, e as hienas fariam o resto. Estas já estavam à espera, no local onde o valezinho se abria e entrava na savana, quase como se soubessem que ele vinha. Sentinela-da-Lua deixou o corpo debaixo de um pequeno arbusto, - todos os ossos anteriores já haviam desaparecido -, e regressou apressadamente para junto da tribo. Nunca mais pensou no pai.

As suas duas companheiras, os adultos das outras cavernas e quase todos os jovens, comiam erva entre as árvores definhadas pela seca, vale acima, e procuravam bagas, raízes suculentas, folhas e dádivas inesperadas constituídas por lagartos ou roedores pequenos. Só os bebês e os velhos mais fracos eram deixados nas cavernas; se sobrasse alguma comida ao fim do dia, talvez fossem alimentados. Se não, as hienas teriam mais um dia de sorte. Mas aquele dia foi bom - embora, claro, Sentinela-da-Lua não possuísse uma verdadeira memória do passado, e não pudesse, portanto, comparar um tempo com o outro. Encontrara uma colmeia no tronco de uma árvore morta, e saboreara a iguaria mais deliciosa que o seu povo jamais conhecera; à tardinha, conduzindo o seu grupo para casa, ainda lambia os dedos de tempos a tempos. Claro que também recebera um razoável número de picadelas, mas mal reparara nelas. Estava o mais perto que podia esperar da satisfação - pois embora ainda tivesse fome, não se sentia realmente debilitado por ela. E isso era o máximo a que um homem-macaco podia aspirar.

A sua satisfação desapareceu quando chegou ao rio. Os Outros estavam lá. Iam lá todos os dias, mas isso não tornava as coisas menos aborrecidas. Eram cerca de trinta e não se distinguiam dos membros da tribo do próprio Sentinela-da-Lua. Quando o viram chegar, começaram a dançar, a abanar os braços e a guinchar, no seu lado do rio, e o povo de Sentinela-da-Lua respondeu-lhes do mesmo modo. E isso foi tudo o que aconteceu. Embora os homens-macacos lutassem várias vezes entre si, muito raramente as suas disputas resultavam em ferimentos graves. Como não possuíam garras nem dentes caninos adaptados à luta, e estavam bem protegidos com o pelo, quase nunca infligiam golpes sérios uns aos outros. Além disso, pouca energia lhes sobrava para comportamento tão improdutivo; rosnadelas e ameaças constituíam um modo muito mais eficiente de afirmarem os seus pontos de vista.

A confrontação durou cerca de cinco minutos; a exibição acabou então tão depressa como começara, e todos se puseram a beber copiosamente na água lamacenta. A honra fora satisfeita; cada um dos grupos frisara bem o direito que tinha ao seu próprio território. Depois de tratado assunto tão importante, a tribo afastou-se pelo seu lado do rio. A pastagem mais próxima ficava a mais de um quilómetro e meio das cavernas, e tinham de partilhá-la com uma manada de grandes animais parecidos com antílopes, que aceitavam muito mal a sua presença e não podiam ser combatidos, pois possuíam ferozes punhais nas cabeças. As armas naturais de que os homens-macaco não dispunham.

Portanto, Sentinela-da-Lua e os seus companheiros mastigavam bagas, frutos e folhas, e combatiam os espasmos da fome enquanto à sua volta, combatendo pelos mesmos pastos, estava uma potencial fonte de mais comida que a que alguma vez poderiam esperar comer. No entanto, os milhares de toneladas de carne suculenta, que deambulavam pela savana e através dos matagais, não se encontravam apenas fora do seu alcance; estavam também para além da sua imaginação. No meio da abundância, morriam lentamente à fome.

A última luz do dia viu a tribo regressar às suas cavernas sem incidentes. A fêmea ferida que ficara arrulhou de prazer quando Sentinela-da-Lua lhe deu o ramo coberto de bagas que trouxera, e atacou-o avidamente. Não era lá grande alimento, mas ajudá-la-ia a sobreviver até a ferida que o leopardo lhe fizera estar sarada, e ela poder voltar a procurar comida por si própria.

Uma lua cheia erguia-se por cima do vale, e um vento gelado soprava das montanhas distantes. Ia ser uma noite muito fria - mas o frio, tal como a fome, não era assunto para grandes preocupações; fazia parte da vida.

Sentinela-da-Lua mal se mexeu quando os guinchos e gritos vindos de uma das cavernas mais baixas ecoaram pela encosta, e não precisou ouvir o rugido do leopardo para saber exatamente o que estava acontecendo. Lá em baixo, o velho Pelo Branco e a sua família combatiam e morriam na escuridão, e o pensamento de que talvez pudesse ajudar nunca atravessou a mente de Sentinela-da-Lua. A desapiedada lógica da sobrevivência excluía tais fantasias, e nem uma voz de protesto se levantou da encosta atenta. Todas as cavernas ficaram silenciosas, pois não queriam por sua vez atrair o desastre.

O tumulto foi morrendo; Sentinela-da-Lua ouviu então o som de um corpo sendo arrastado por cima das pedras. Mas durou apenas alguns segundos; depois, o leopardo abocanhou a sua presa. Sem mais ruídos, afastou-se silenciosamente, carregando a sua vítima nos dentes.

O leopardo não representaria qualquer perigo durante um dia ou dois, mas podia haver outros inimigos por aí, tirando partido do Pequeno Sol frio que só brilhava à noite. Às vezes, e desde que fosse dado o alerta, os gritos e berros chegavam para pôr em fuga os predadores menores. Sentinela-da-Lua rastejou para fora da caverna e trepou para um pedregulho que estava ao lado da entrada, onde se agachou vigiando o vale.

De todos os seres que alguma vez haviam caminhado na Terra, os homens-macacos eram os primeiros a olhar de frente para a lua. E, embora não pudesse se lembrar, quando era pequeno Sentinela-da-Lua costumava esticar-se todo e tentar tocar naquela face fantasmagórica que se erguia acima das montanhas. Nunca o conseguira, e agora já era suficientemente crescido para saber o porquê. Era mais que óbvio que primeiro teria de subir a uma árvore muito alta. Contemplava o vale, observava a lua, e estava permanentemente à escuta. Dormitou uma ou duas vezes, mas sempre com os sentidos alerta - despertaria ao menor som. Apesar de já ter vinte e cinco anos, continuava na posse de todas as suas faculdades; se tivesse sorte e evitasse acidentes, doenças, predadores e inanição, talvez sobrevivesse mais dez anos.

A noite ia-se arrastando, fria e clara, sem mais alarmes, e a lua erguia-se lentamente por entre constelações equatoriais que os olhos humanos nunca contemplariam. Nas cavernas, entre períodos de sono irregular e vigílias temerosas, geravam-se os pesadelos de gerações futuras.

Um ofuscante ponto de luz, mais brilhante que qualquer estrela, atravessou lentamente o céu.

* Este texto é uma adaptação do capítulo “Estrada para a Extinção” do livro “2001: Uma Odisséia no Espaço” de Athur C. Clark, e foi utilizado para permitir – de uma forma lúdica – conjecturas acerca de como poderia ser a cognição humana primordial.

1 comentários:

COLARES, K. Ψ disse...

ao ler seu texto ... fiquei pensando que talvez gostasse de ler este outro de um outro blog..:
http://psicopensandis.blogspot.com/2011/07/o-principio-do-minimalismo.html

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