O professor Gerson A. Janczura estuda a memória humana no Laboratório de Processos Cognitivos da Universidade de Brasília (UnB). Sendo um dos pioneiros da área, Gerson teve um papel importante na introdução e expansão da psicologia cognitiva no Brasil. Nesta entrevista que ele gentilmente nos cedeu, o professor explorou um pouco do conhecimento que possuímos hoje acerca de como a memória humana funciona, de como somos capazes de formar memórias falsas, das intervenções práticas que a psicologia cognitiva pode subsidiar e das dificuldades que a psicologia cognitiva enfrenta para ganhar espaço no Brasil.


Gerson, você poderia nos falar brevemente sobre os projetos de pesquisa que você tem conduzido no seu grupo de pesquisa? 
A maioria dos projetos desenvolvidos no Laboratório de Processos Cognitivos/UnB estão associados à investigação da Memória Humana. Duas questões centrais de interesse orientam os projetos: a primeira se relaciona à representação mental do conhecimento na memória e, a segunda, sobre a interação entre a Memória e outros Processos Cognitivos. Seguem alguns projetos em andamento:

1)      Normas de Associação Semântica: este projeto está mapeando as redes associativas de material verbal (palavras) que incluem medidas de força associativa, tamanho do conjunto, conectividade e ressonância. A produção deste material permitirá investigar as influências de mecanismos implícitas (e.g., priming) em medidas de memória diretas e indiretas, assim como a sua influência em outros processos cognitivos como o Raciocínio Lógico e a Categorização.

2)      Categorização e Memória: investiga o efeito de mecanismos da memória no desempenho de tarefas que envolvem conceitos e categorias, classicamente conhecidas como “aprendizagem de conceitos”. As questões de interesse se relacionam à aquisição e representação mental de conceitos naturais e artificiais, o efeito da tipicidade em tarefas de classificação, o efeito da força do traço e outras dimensões representacionais em problemas que envolvem o raciocínio dedutivo.

3)      Dicionário de Verbetes da Memória: este projeto está sendo desenvolvido junto ao GT da ANPEPP “Memória: Modelos, pesquisa básica e aplicações” que congrega 9 pesquisadores vinculados a sete universidades no Brasil e Portugal. O livro apresentará mais de 300 verbetes sobre a teoria e pesquisa sobre a Memória, assim como termos da Ciência Cognitiva.

4)      Projetos desenvolvidos junto aos alunos do Mestrado ou Doutorado:
a.       Treino da Memória para Idosos: Este projeto visa desenvolver um programa de intervenção e avaliação da memória para idosos focalizando a reabilitação das funções mnemônicas e a aquisição de estratégias de enfrentamento do comprometimento observado nesta etapa do desenvolvimento humano.

b.      Processo de facilitação e inibição na memória implícita de idosos: O projeto investiga o desempenho da memória na terceira idade verbal focalizando o papel das etapas de processamento implícito no acesso à informação em tarefas que solicitam a recuperação direta do material auxiliada por pistas.

c.       O desempenho de enxadristas em função da especialização e fases do jogo: Este projeto se insere no campo da Resolução de Problemas e Expertise pretendendo colaborar na compreensão das diferenças entre novatos e especialistas, assim como no curso do desenvolvimento da especialização.
d.      Programa de Reabilitação de Indivíduos com Lesão do Plexo: O objetivo deste projeto é desenvolver um programa de intervenção, baseado em técnicas imagísticas e atividades fisioterápicas, para indivíduos que sofreram a lesão do plexo e, em conseqüência, têm os movimentos do braço respectivo comprometido.

E quais são os projetos de pesquisa para o futuro?
Geralmente, os projetos desenvolvidos pelos pesquisadores estão inseridos em Programas de Pesquisa. No Laboratório de Processos Cognitivos da UnB desenvolvemos estudos em dois grandes programas de pesquisa: um programa direcionado ao desenvolvimento de intervenções relacionadas a diferentes tipos de dificuldades cognitivas (por exemplo, problemas relacionados à memória), e outro programa voltado para a pesquisa básica (por exemplo, desenvolvimento da expertise, investigação de dificuldades de leitura, fatores que influenciam o desempenho da memória). Estes programas de pesquisa interagem, isto é, promovemos uma troca entre as pesquisas básica e aplicada.

Como surgiu o seu interesse pela sua área de pesquisa?
Meu interesse na pesquisa psicológica iniciou na época da graduação. Na ocasião, atuava como monitor do Laboratório de Aprendizagem Animal na PUCRS. Este interesse foi se consolidando quando passei a coordenar o Laboratório de Percepção e Psicofísica na mesma IES, e desenvolvi minha primeira pesquisa no campo da Percepção e Psicofísica investigando a Ilusão de Myller-Lyer. Na mesma época, fui convidado para colaborar na montagem do Laboratório de Aprendizagem Animal da UCS/RS. Naquele período não tinha, ainda, entrado em contato com a Psicologia Cognitiva Experimental. O primeiro contato com a área ocorreu quando fiz o mestrado na UnB, na década de 1980. No início do mestrado esperava desenvolver a pesquisa de conclusão seguindo a abordagem da Análise Experimental do Comportamento. Entretanto, experienciava muitas dúvidas e insatisfações teóricas, metodológicas e empíricas com esta perspectiva. Minhas críticas eram semelhantes àquelas relatadas na história da Psicologia Cognitiva nas décadas de 1950 e 1960. Durante o mestrado tive a oportunidade de conhecer a abordagem do processamento da informação e desenvolver minha pesquisa no campo da representação mental do conhecimento.

Alguns dos seus projetos indicam que o conhecimento produzido pela psicologia cognitiva tem permitido o desenvolvimento de intervenções efetivas em indivíduos com prejuízos na memória (e.g. idosos). Conte-nos um pouco sobre este tipo de aplicação da psicologia cognitiva e como tem sido a sua experiência com estas aplicações.
Desenvolvemos um programa de intervenção e avaliação da memória para idosos institucionalizados. Nossa motivação era promover qualidade de vida de um grupo que tem recebido pouca atenção. Os procedimentos, desenvolvidos em sessões com 60 minutos, duas vezes por semana durante quase quatro semanas, evidenciaram que a intervenção melhorou o desempenho em testes de memória. Além disso, foi verificado que os idosos também obtiveram uma avaliação melhor em testes de avaliação neuropsicológica após o treinamento. Os procedimentos implementados no treino de memória foram delineados a partir do conhecimento científicos acerca dos processos da memória e dos fatores que podem favorecer ou dificultar o seu desempenho. Esta proposta será, agora, estendida e ampliada para idosos sem comprometimento cognitivo severo. O termo “envelhecimento cognitivo normal” está associado às características cognitivas observadas na terceira idade que não são atribuídas a condições patológicas como, por exemplo, a Doença de Alzheimer.
Outra derivação tecnológica que estamos desenvolvendo se apóia em estudos experimentais e clínicos sobre a influência da imagística no indivíduo. Pesquisas e a prática clínica têm evidenciado que o uso de imagens mentais pode afetar o comportamento humano e o próprio funcionamento cerebral. Este fato pode ser útil no programa de intervenção que estamos desenvolvendo, baseado em técnicas imagísticas e atividades fisioterápicas, para indivíduos que sofreram a lesão do plexo e, em conseqüência, têm os movimentos do braço(s) respectivo comprometido. A origem desta lesão é, usualmente, acidentes com motocicletas sendo que a maioria dos pacientes com esta condição é homem. Este projeto se encontra em avaliação pelo Comitê de Ética, e será brevemente iniciado. Ou seja, pacientes com esta condição serão submetidos a um programa de exercícios mentais associados a fisioterapia durante um conjunto de sessões. Nossa expectativa é que estes pacientes alcançarão maior recuperação dos movimentos comparados aos pacientes que somente receberão a fisioterapia.

Como você avalia as implicações do avanço das neurociências no estudo de aspectos cognitivos e comportamentais?
As neurociências têm impactado muito positivamente as hipóteses cognitivas sobre o comportamento humano. As evidências produzidas, por exemplos, pelas técnicas de neuroimagem têm confirmado muitas afirmações sobre o funcionamento da mente e evidenciado a necessidade de compreendermos e investigarmos os fenômenos psicológicos em, pelo menos, dois níveis: o nível neurológico e o nível cognitivo. Estes níveis interagem impondo limites mutuamente, tanto no comportamento quando nos modelos teóricos propostos pelos pesquisadores.

Considerando o panorama atual na psicologia cognitiva, o que nós sabemos hoje sobre o que é a memória e como ela funciona?
Trata-se de uma pergunta ambiciosa. A investigação científica da memória começou há mais de 100 anos e tem produzido uma vasta literatura científica que se dedica a relatar nosso conhecimento sobre a memória do ponto de vista cognitivo. Tentarei apontar alguns aspectos que considero relevantes. A memória é uma propriedade do cérebro que permite ao indivíduo manter sua história de aprendizagem ao longo do tempo. Sabemos que vários fatores influenciam a aquisição, retenção e recuperação destes conteúdos. Isto significa que o desempenho da memória pode ser beneficiado ou comprometido por diferentes processos, ou momentos, que designamos de codificação, armazenamento e recuperação. Estes fatores incluem as características da informação a serem memorizadas, as diferenças individuais, a natureza do teste de memória, as estratégias administradas pelo indivíduo no momento da memorização e da recuperação, como a informação é apresentada para memorização, o tempo decorrido entre a experiência e sua lembrança, entre outros fatores. Mas, é importante destacar que, além de suas contribuições individuais, as variáveis que afetam as diferentes etapas podem interagir influenciando a probabilidade de lembrarmos-nos de experiências e conhecimentos.
Um fator que mudou nossa compreensão sobre o funcionamento da memória foi relatado em vários estudos experimentais na década de 1970 com amnésicos e indivíduos sem danos aparentes de memória. Estes estudos mostraram que a chance de um amnésico lembrar informações também era influenciada pela maneira como aqueles pacientes eram testados. Demonstrou-se que os pacientes registravam experiências anteriores mesmo que não tivessem consciência destas no momento em que a memória era avaliada e, apesar disto, aquelas informações estavam influenciando seu comportamento atual. Estes resultados são semelhantes em indivíduos com memória intacta, ou seja, formamos nossas memórias com e sem a participação da consciência e evocamos informações com e sem intenção consciente. Atualmente, nossa compreensão sobre a memória contempla mecanismos conscientes (denominados de processos estratégicos) e inconscientes (denominados de processos automáticos). Neste sentido, a memória também se refere às influências dos conteúdos conscientes e inconscientes e dos mecanismos estratégicos e automáticos sobre o comportamento humano.
Sabemos que este funcionamento está sujeito a falhas incluindo esquecimentos temporários, esquecimentos parciais, e falsas lembranças (ou, falsas memórias). Estes fatos têm sido discutidos em função do caráter construtivo ou reconstrutivo da memória e têm influenciado nossa compreensão sobre diversos fenômenos cotidianos como a testemunha ocular e o depoimento assistido de crianças.
Além dos avanços na compreensão dos processos da memória, a pesquisa tem contribuído na concepção da memória como um sistema. Evoluímos do modelo clássico de um armazenador breve de experiências imediatas (i.e., Memória de Curto-Prazo) para um modelo mais satisfatório (i.e., Memória de Trabalho) que atende às demandas e complexidade das tarefas momentâneas. Vários modelos teórico-experimentais (e.g., MATRIX, PIER2, Modelos Conexionistas, TODAM, ACT*, CONJOINT RECOGNITION, MINERVA, CHARM) estão sendo testados e aprimorados para respondermos às questões fundamentais sobre como o conhecimento é armazenado, como é representado e retido durante longos períodos de tempo (i.e., Memória de Longo-Prazo).
Os comentários acima mencionaram, muito brevemente, apenas detalhes sobre nosso conhecimento atual sobre a memória humana. Vários campos de estudos que não citei incluem avanços nos temas: metamemória, memória sensorial, memória não-declarativa, memória episódica, memória autobiográfica, memória para o espaço e tempo, memória semântica, memória visual, desenvolvimento da memória, distúrbios da memória, memória na terceira idade, memória prospectiva, métodos de investigação da memória, e neurociência da memória.

O testemunho de pessoas que presenciaram determinados episódios (como um assassinato) pode ter um peso considerável no julgamento de um caso. Entretanto, muitas pesquisas na psicologia cognitiva indicam que modificamos frequentemente nossas memórias episódicas quando as recuperamos. Podemos confiar na nossa capacidade de recuperar estes episódios passados?
A observação de que o indivíduo pode gerar falsas memórias não implica que toda recordação seja falha, ou que devemos desconfiar de todas as nossas lembranças. As falsas memórias podem se relacionar a episódios específicos e traumatizantes, como um assassinato, mas também podem refletir experiências comuns do cotidiano. Entretanto, a maioria de nossas recordações é acurada. É importante lembrar que a memória não atua independentemente de outros processos mentais como, por exemplo, o raciocínio, a atenção. Isto significa que uma recordação pode sofrer o “filtro” de outras atividades mentais levando o indivíduo a concluir que determinada memória é falsa, verdadeira ou duvidosa. Além disso, não podemos excluir a contribuição de outros componentes da experiência humana como, por exemplo, a emoção e sua relação com a cognição.

É difícil ser um pesquisador em psicologia no Brasil?
Sim, é difícil. A pesquisa de ponta sobre a cognição humana é cara. Considere, por exemplo, que cada vez mais a pesquisa têm se apoiado em variáveis biológicas. Tanto as variáveis cognitivas quanto as biológicas demandam especialização metodológica de alto custo operacional. Como coletar dados de imagem cerebral sem a aparelhagem apropriada (RMF, fMRI, etc)? Outra dificuldade se relacionada à escassez de especialistas na área no país e ao ensino desta abordagem. Quantos cursos de graduação incluem Psicologia Cognitiva nos cursos de graduação? Quantos cursos de pós-graduação têm linhas de pesquisa e programas de pesquisa nesta abordagem? Apesar de esta perspectiva teórico-metodológica estar consolidada em outros países há muitas décadas, no Brasil somente mais recentemente a área cognitiva tem logrado participação e reconhecimento na comunidade científica e nos meios acadêmicos.

Qual foi o melhor conselho que você já recebeu?
 Um dos conselhos mais úteis que recebi durante meu doutoramento foi sempre “fazer o melhor possível em minhas tarefas”. Este conselho foi dado pelo meu orientador, Dr. Douglas L. Nelson da University of South Florida/USA, lá nos anos 1990.

Você recomenda alguma leitura para quem se interessa pela sua área?
Vários livros sobre a área já estão disponíveis no Brasil. Se a pessoa não tem familiaridade com a área sugiro que leia um manual ou livro texto. Um panorama amplo da área é oferecido por:

- Sternberg, R.J. (2010). Psicologia Cognitiva (Tradução da 5a.ed.). São Paulo: CENGAGE.
- John R. Anderson (2004), Psicologia Cognitiva e suas Implicações Experimentais, 5a. Edição, Editora LTC.
- Matlin, M. (2004). Psicologia Cognitiva. 5. ed. São Paulo: LTC.
Se a pessoa tem interesse em Terapia Cognitiva, sugiro que inicie com a leitura de:
- Beck, J. S. (1997). Terapia Cognitiva: Teoria e Prática. Porto Alegre: ARTMED.

Esta série de entrevistas é uma parceria entre os blogs SocialMente e Cogpsi. Visite-nos para conhecer um pouco mais sobre psicologia


Mônica C. Miranda é pesquisadora pela Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa (AFIP), formada em Psicologia pela Universidade São Marcos e possui Mestrado e Doutorado em Psicobiologia pela Universidade Federal de São Paulo. É orientadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde e Pesquisadora do Depto de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo. Coordena o Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil Interdisciplinar (NANI) do Centro Paulista de Neuropsicologia. Mônica é também uma das autoras do livro Neuropsicologia do Desenvolvimento: conceitos e abordagens, publicado em 2006. Além disso, ela também é uma das organizadoras do livro Neuropsicologia do Desenvolvimento: Transtornos do neurodesenvolvimento, que será publicado em outubro de 2012 pela Editora Rubio. Nesta entrevista, a Mônica ofereceu a sua perspectiva, enquanto uma profissional da área, sobre as recentes polêmicas envolvendo o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), além de comentar sobre os seus projetos de pesquisa. Façam bom proveito!
Mônica, você pode nos contar um pouco sobre os projetos de pesquisa que você está desenvolvendo em seu grupo de pesquisa atualmente e sobre os projetos que estão a caminho?
As pesquisas que eu estou envolvida atualmente dizem respeito a duas linhas principais: a primeira se refere a desenvolvimento/normatização de instrumentos de avaliação neuropsicológica na infância, levando em consideração as características socioeconômicas e culturais na infância; a segunda linha é de diagnóstico, intervenção e prevenção nos distúrbios do neurodesenvolvimento.
Como surgiu o seu interesse pela sua área de pesquisa?
A Universidade São Marcos, na qual fiz o curso de Psicologia, oferecia um curso com base na Psicanálise que me fascinou a princípio e me fez pensar em buscar a especialização nessa área, e a área clínica me parecia o caminho mais “lógico”; iniciei, a partir do 5º ano, os estágios clínicos, obrigatórios e opcionais, mas um dos estágios opcionais, atendimento psicoterápico a crianças com obesidade, mostrou-me outros caminhos. As crianças eram encaminhadas pela Disciplina de Nutrologia da UNIFESP, onde tinham acompanhamentos com médicos, nutricionistas, entre outros, e nossa atuação era a intervenção psicológica. Nesses atendimentos descobri o quanto era fascinante, e ao mesmo tempo inquietante, lidar com esses quadros. Inquietante porque percebia haver não só fatores psíquicos que determinavam esse quadro, mas também outros fatores os quais eu ainda não conseguia denominar na época, pelo pouco conhecimento. Essa inquietude me fez buscar a especialização na área da saúde, especificamente na UNIFESP devido à parceria com a Universidade São Marcos, no trabalho com as crianças com obesidade. Ao receber uma indicação de uma vaga de estágio no Departamento de Psicobiologia, iniciei o contato com a pesquisa científica, bem como com a neuropsicologia, ambas desconhecidas para mim. A neuropsicologia se tornou minha paixão exatamente por estudar as interações entre os fatores neurobiológicos e psicológicos.
Em relação à sua primeira linha de pesquisa, como se dá essa relação entre avaliação neuropsicológica e características sócio-econômicas? As características sócio-econômicas podem influenciar o desenvolvimento neurocognitivo (e até que ponto se dá essa influência)?
A avaliação neuropsicológica na infância é fundamental na definição de vários diagnóstico, e assim as diversas técnicas (testes, instrumentos) de avaliação precisam ter dados padronizados levando em consideração se há ou não a influencia de fatores socioeconômicos e culturais. O que isso quer dizer? que esse é um fenômeno complexo, não basta utilizarmos testes que tenham padrão de desempenho internacionais se não soubermos até que ponto esse desempenho sofre a influencia dessas variáveis. Por exemplo, vimos que em algumas culturas determinadas habilidade (verbais, por ex.) podem ser mais estimuladas, e ainda que em ambientes menos favorecidos economicamente essas mesmas habilidades verbais, como no caso da aquisição de vocabulário, podem se desenvolver de forma diferente. Veja que utilizo o termo 'diferente' e não 'pior' ou 'melhor', pois seria muita imprudência qualquer afirmação disso, na medida em que, como eu disse antes, o fenômeno ambiental é algo complexo e não totalmente entendido, ou seja, o que nesse ambiente em que a criança cresce e se desenvolve poder ser prejudicial e no que? Outro exemplo, a desnutrição é prejudicial ao desenvolvimento cognitivo, mas quando aliado a extensão desse quadro mais condições de extrema pobreza que potencializam o risco de continuidade da desnutrição. O papel das pesquisas é exatamente esse, determinar o que e como.
Tem-se debatido regularmente na mídia sobre o TDAH, sendo que alguns grupos de profissionais questionam a existência deste distúrbio e de outros, os chamando de ‘supostos transtornos’. Qual é a sua posição sobre este tema?
Essa argumentação não se sustenta a luz da comunidade científica. Essa discussão surgiu acerca de 2 anos no Brasil por um grupo de profissionais apoiados pelo Conselho Federal de Psicologia, mas sem nenhuma base cientifica, ou seja, essa discussão se apoia em concepções teóricas e ideais que já foram contestadas pela comunidade cientifica brasileira por não terem nenhuma base cientifica.
Por exemplo, uma carta emitida e publicada pela Associação Brasileira do Déficit de Atenção (www.tdah.org.br), escrita pelo Dr. Paulo Mattos e Dr. Luiz A. Rohde, respeitados pesquisadores brasileiros em TDAH, bem como pela Associação Brasileira de Psiquiatria (www.abp.org.br), traz argumento importantes acerca dessas opiniões. Segue um trecho dessa carta: “Quando você ouve alguém falar que TDAH é uma doença inventada, por mais eloquente que seja o autor desta opinião sem qualquer base científica, ou mesmo a sua titulação (a incapacidade e leviandade sempre foram democráticas: também acometem médicos, psicólogos, etc.), pesquise sobre a veracidade (e a origem) do que está sendo dito (…).
O reconhecimento que se trata de um transtorno neurobiológico que causa prejuízo significativo é inequívoco, com estimativa de prevalência, no mundo inteiro, em cerca de 5,2% de crianças afetadas e que persiste na idade adulta.  Há sim estudos como o do Prof. Dr. Marcos Arruda, cujo resumo foi apresentado no 3rd International Congress on ADHD, Berlim/Alemanha, e os resultados mostram que muitos diagnósticos são realizados por profissionais que não conhecem os critérios internacionais. Há necessidade de critérios diagnósticos baseados em instrumentos gold-standard, mas o mesmo estudo ainda aponta que “aproximadamente 1,7 milhões de adolescentes e crianças brasileiras com TDAH nuca foram diagnosticados e 2,5 milhões nunca foram tratados”.
Umas das alegações desse grupo de profissionais é que os critérios diagnósticos baseados nas escalas de comportamento como a SNAP não é critério de doença, “Se você preencher seis das perguntas tem o diagnóstico de déficit de atenção, hiperatividade ou dos dois” (afirmativa desse grupo de profissionais). Porém, a delimitação diagnóstica não se limita apenas aos critérios descritos em escalas de comportamento, mas a uma ampla variedade de comportamentos que são verificados em diferentes contextos que permitirão uma observação mais flexível e dinâmica da criança com TDAH, bem como na avaliação interdisciplinar que poderá afastar outras causas, como as ambientais.
Para finalizar, é um absurdo esse grupo promover esses fóruns sem dar espaço aos pesquisadores da área, pois para mim esses fóruns com uma visão unilateral são uma irresponsabilidade, pois pode negar o direito a essas crianças de tratamento adequado. Essa semana o Instituto ABCD divulgou que a Câmara analisa o Projeto de Lei 3394/12, do deputado Manoel Junior (PMDB-PB), que obriga os estados e municípios a manter programa nas instituições de educação básica para diagnóstico e tratamento de estudantes com dislexia. Outra conquista foi o Edital do ENEM de 24 de Maio desse ano que haverá atendimento DIFERENCIADO aos portadores de dislexia, déficit de atenção, autismo, etc. Sem as pesquisas que mostram as dificuldades dessas crianças essa conquista não teria acontecido e é irresponsabilidade não dar o direito a estes indivíduos de que há um distúrbio e que a culpa não é deles.
Ainda sobre esta polêmica, estes mesmos profissionais têm alegado haver uma prescrição indiscriminada de medicamentos relacionados ao TDAH. Este é um problema real?
Primeiro é importante ressaltar que quando o diagnóstico de TDAH é estabelecido, o uso de medicações é uma estratégia muito útil e necessária para atingir os objetivos dos pacientes. A utilização de medicações não é a regra para todos os casos, particularmente aqueles com sintomas leves e sem repercussões importantes na vida social e acadêmica, mas isso tem que ser analisado caso a caso. Mesmo assim, pode ser necessário medicar esses casos leves e monitorar os efeitos e eficácia.
Sim, houve um aumento de prescrições de metilfenidato (principal medicamento utilizado para tratamento do TDAH), mas isso não significa que está tendo prescrição indiscriminada, e se isso ocorre é devido a um importante fator: em minha opinião há profissionais mal preparados e que saem fazendo “diagnóstico” equivocado de TDAH. Já vi apresentações em congressos (pôsteres, apresentações orais) de profissionais da saúde que são verdadeiros absurdos, pois isoladamente faziam tal “diagnóstico” e ai obviamente pode haver prescrição inadequada de medicamentos.
 Outro fator, que destacamos em nosso livro (ver referência ao final), é que o TDAH é um transtorno crônico do desenvolvimento, melhor tratado vagarosa e sistematicamente. Isso vai de encontro ao senso de urgência do paciente ao descobrir que tem TDAH – ele busca uma cura rápida, e pode tentar apressar o processo com suas próprias mãos, aumentando as doses muito rapidamente, que pode levar a um curso mais longo de tentativas de tratamento, muitas vezes com diversos medicamentos diferentes e sem a eficácia possível. Por outro lado, muitos médicos relutam em prescrever doses adequadas de medicamentos, o que pode impedir a identificação de uma dose ótima.
Em uma entrevista à Revista Época (edição 2229) o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria afirmou algo muito importante “Podemos discutir se estamos medicando demais, mas dizer que o TDAH não existe ou que a medicação é desnecessária não é o caminho para que isso aconteça”, considera. “E não é comum as pessoas terem TDAH. Se olharmos as estatísticas, 95% das crianças não têm a doença, e não o contrário”.
Os debates devem, sim, acontecer em torno dessa questão, alertando a população que simplesmente não utilizar medicamento em casos de TDAH, principalmente quando há comorbidades psiquiátricas, é um risco à vida desses pacientes. Tivemos vários casos atendidos em nosso núcleo (Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil) em que as mães se recusavam a medicar seus filhos e vimos essas crianças em situação de risco extremo (atravessar a rua correndo muito bem na frente de carros, pulando muros muito altos das escolas, escalando, literalmente, janelas).
Vou ousar bastante, mas em minha opinião a população deve ser alertada que pode haver diagnóstico realizado por profissionais não tão bem preparados, que pais e/ou pacientes devem procurar profissionais reconhecidos pelas Associações de Classe como a ABP, ABDA. Fazendo uma analogia com a cirurgia plástica, a recomendação do Conselho Federal de Medicina é que os pacientes procurem especialistas em cada área, ou seja, o paciente não deve procurar um cirurgião geral, mas um membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. No caso do TDAH muitos pacientes que tomam o remédio podem o estar fazendo sem ter passado por um diagnóstico adequado.
É difícil ser um pesquisador em psicologia no Brasil?
Por estar num campo de pesquisa que é a Neuropsicologia as dificuldades são as mesmas para todos os pesquisadores da área da saúde, faltam verbas, financiamentos inadequados, baixos salários, além do fato de no Brasil a carreira do pesquisador ser completamente ligada a um concurso público para professor adjunto de uma universidade. Uma matéria publicada pelo renomado cientista brasileiro o Dr. Miguel Nicolelis resume bem o que está errado e o que precisa mudar em nosso cenário: “A política da ciência brasileira está ultrapassada. Principalmente, a gestão científica. O mais importante nós temos: o talento humano. Mas ele é rapidamente sufocado por normas absurdas dentro das universidades. Não podemos mais fazer pesquisa de forma amadora. Devemos ter uma carreira para pesquisadores em tempo integral e oferecer um suporte administrativo profissional aos cientistas.”
Por ultimo a maior dificuldade para as publicações em minha área é devido aos critérios da CAPES, pois atuo em dois departamentos na UNIFESP e cada um terá uma área diferente de avaliação pela CAPES, no meu caso Medicina e Interdisciplinaridade, e isso implica em critérios de impacto diferentes o que torna os indicadores adequados para uma área e baixo para a outra. A unificação dos critérios para todas as áreas seria essencial, pois cada vez mais o trabalho interdisciplinar em pesquisas aumenta substancialmente.
Existem mudanças que facilitariam o seu trabalho?
Não sei como mudar essa situação em curto prazo, só acho muito estranho que para ser professor universitário passamos muito tempo no mestrado e no doutorado aprendendo basicamente a fazer pesquisa, e depois lutamos para poder orientar e conduzir pesquisas no tempo que nos sobra entre reuniões e outra tarefas acadêmicas, como a graduação. Bom, não posso reclamar muito, porque estou em uma universidade muito boa, aonde a pesquisa é valorizada e os alunos são muito bons e interessados em pesquisa. A gente “sofre” um pouquinho, mas consegue levar os projetos adiante.
Qual foi o melhor conselho que você já recebeu?
Do meu orientador e chefe atualmente, o Prof. Dr. Orlando Bueno. Um dia eu perguntei a ele como conseguiu fazer com que um grupo de alunos de mestrado e doutorado abrisse um dos centros de neuropsicologia mais conhecidos no Brasil, o CPN e em nosso caso o NANI, ele apenas me respondeu “Eu não sei, assim como você também não saberá até ter as pessoas que querem fazer isso caminhando livremente para tal.”
Você recomenda alguma leitura para quem se interessa pela sua área?
Sim, há no mercado brasileiro diversos livros escritos por renomados pesquisadores em Neuropsicologia no Brasil, mas o mais importante é a leitura crítica acerca das questões políticas que estamos enfrentando hoje. Uma delas refere-se a sua 1ª pergunta sobre a existência de “supostos transtornos” e a outra ainda sobre o problema do CFP considerar testes neuropsicológicos como sendo testes psicológicos, o que difere substancialmente. Para ler mais:
MUSZKAT, Mauro, MIRANDA, M. C., RIZZUT, S. Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. São Paulo: Cortez Editora, 2011, v.3. p.142.
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* Texto "Um Bom Momento Para o Estudo da Neurociência Cognitiva Social", publicado no Boletim da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia de Maio de 2012.

O aumento expressivo da visibilidade dos argumentos neuropsicológicos no cenário mundial parece denotar uma força crescente da Neuropsicologia entre os psicólogos. Visibilidade esta que parece estar também se expandindo progressivamente no âmbito nacional, tendo em vista que os tópicos abordados na área e os achados provenientes de estudos neuropsicológicos tem sido foco de um interesse cada vez mais intenso não só por parte de estudantes do comportamento, mas como da mídia e da população em geral. Observando este quadro, talvez este seja um bom momento para que os neuropsicólogos nacionais possam se dispor a investigações interdisciplinares, não só visando aumentar sua área de atuação, como também a solidez das suas teorias. Partindo da interdisciplinaridade natural da Neuropsicologia e a possibilidade de possíveis bons frutos provenientes desta postura, uma sugestão é a de que os neuropsicólogos brasileiros passem a integrar cada vez mais em suas investigações e práticas o estudo social do comportamento, tema central da Psicologia Social.

Uma característica da Psicologia Social é a de que mesmo durante os anos em que imperou o argumento condutivista na psicologia, esta disciplina foi uma das poucas áreas da ciência do comportamento a não se privar do uso de estratégias de análise e conceitos implicados em uma perspectiva mentalista (Pereira, 2011). Ainda assim, embora exista uma atual posição hegemônica do estudo da cognição social nesta disciplina, foi somente a partir de 1980 que os manuais de Psicologia Social passaram a fazer referência explícita à cognição como parte fundamental da compreensão do comportamento, pois anteriormente – apesar de mentalistas – as teorias não atribuíam à cognição esse papel (Pereira, 2011). Não diferente do estudo da cognição já conhecido por neuropsicólogos (Teoria do Processamento de Informação), o estudo da Cognição Social também diz respeito à investigação de como as pessoas processam, codificam, armazenam, representam e acessam informações, embora esta esteja focada na natureza social deste processo (Haase, Pinheiro-Chagas & Arantes, 2009; Lieberman, 2007; Pereira, 2011). Sendo assim, parece possível estabelecer uma relação produtiva entre a neuropsicologia e a psicologia social, estabelecendo entre elas uma relação de trocas metodológicas, teóricas e de questões empíricas (Hasse e cols., 2009).

A Neurociência Cognitiva Social (NCS) é um campo interdisciplinar que representa uma oportunidade para o estudo destes pontos de forma contígua, ao atribuir ênfase ao conceito de mediadores cognitivos e a tentativa de identificar como estes dispositivos mentais se inserem em uma posição intermediária na tríade constituída pelo comportamento e experiências sociais e emocionais e os substratos neurais envolvidos com eles (Haase e cols., 2009; Ochsner, 2007; Pereira, 2011), ao combinar as ferramentas da Neuropsicologia e da Neurociência Cognitiva com as questões e teorias de várias ciências sociais, incluindo a economia e as ciências políticas (Lieberman, 2007). Logo, a dimensão cognitiva nessa disciplina é o elo entre o comportamento social investigado pelos psicólogos sociais e as bases neurobiológicas do comportamento, investigado pelos neuropsicólogos (Haase e cols., 2009).

O principal benefício para os neuropsicólogos na interação com psicólogos sociais é poder usufruir de sua rica tradição teórica e empírica consolidada em décadas sobre os mais diferenciados comportamentos relevantes para a interação social humana, ganhando valor heurístico para as suas próprias teorias (Haase e cols., 2009). Apesar de sua existência recente, estudos da NCS já apontam achados importantes tanto do ponto de vista teórico, quanto clínico. Um bom exemplo do uso de alguns conceitos da psicologia social para os neuropsicólogos vem de evidências que têm demonstrado que as ações humanas são determinadas pela atuação concomitante de dois grandes sistemas cognitivos (Pereira, Dantas & Alves, 2011). Um deles, biologicamente mais antigo, responsabiliza-se pela expressão dos comportamentos automáticos, processos rápidos, não-intencionais, emocionais e motivacionais, enquanto o segundo sistema, de resposta mais lenta, destina-se a gerenciar as ações controladas e mais sujeitas à intencionalidade, relacionadas com a atenção e intenção (Lieberman, 2007; Pereira e cols., 2011). No quadro 1 são apresentadas algumas diferenças da atuação destes sistemas:

Características
Sistema 1
Sistema 2
Quantidade de esforço intencional
Exigem pouco ou nenhum esforço intencional
Exige esforço intencional
Grau de consciência
Geralmente fora do conhecimento consciente
Exige conhecimento consciente
Uso dos recursos de atenção
Pouco uso
Muito uso
Tipo de processamento
Realizados pelo processamento paralelo
Realizados serialmente
Limiar de processamento
Processamento de estímulo subliminar
Processamento de estímulo supraliminar
Erros de processamento
Poucos erros
Muitos erros
Carga de trabalho
Não reduzem a capacidade de realizar outras tarefas
Reduzem a capacidade de realizar outras tarefas
Tipos de memórias relacionadas
Memória não declarativa
Memória declarativa e memória operacional
Quadro 1: Características dos sistemas 1 e 2 de processamento de informações. Adaptado de Pereira, Dantas & Alves (2011)

Utilizando esse exemplo do sistema dual de processamento de informação, é possível questionar até em que medida eles poderiam estar relacionados com a expressão ou não de inibição de certos comportamentos em, por exemplo, crianças com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. Estaria tal criança sob a regência imperiosa do Sistema automático de processamento de informações e por isso não conseguiria controlar de forma plena sua expressão comportamental? Tal investigação poderia resultar em evidências ainda mais sólidas para a existência desse transtorno e também para o tratamento? É esperado que, com o avanço de estudos neuropsicológicos na área da cognição social, seja possível trazer uma maior compreensão de doenças cujo déficit na interação social é pronunciado e auxiliar o tratamento de pacientes a partir do entendimento de alguns fundamentos neuro-sociocognitivos (Haase e cols., 2009).

Outro ponto positivo nessa troca entre disciplinas é o retorno na consistência teórica que os estudos promovidos por neuropsicólogos disporiam para os psicólogos sociais, pois ao passo que os neuropsicólogos obtêm os ganhos supracitados, estes terminam por conferir a estes mesmos modelos teóricos sociocognitivos critérios biológicos elegantes (Haase e cols., 2009). Como exemplo, dados que evidências que tais processamentos seriam também regidos por diferentes regiões neurais, se tornando ainda mais sólida a apuração desta teoria no momento em que se mostram corroborados com estudos neurocognitivos (Lieberman, 2007).



A NCS ocupa um ponto de intersecção entre grandes disciplinas, como é possível ver na Figura 1. Os três círculos maiores representam disciplinas tradicionais, enquanto que a NCS, pelo seu caráter interdisciplinar, está localizada entre os campos das Ciências Sociais e Neurociências, mas também podendo estabelecer contato com a área da Saúde (Ochsner, 2007), o que manifesta uma clara riqueza em possibilidades metodológicas e teóricas.
Ademais, tendo em vista que a investigação da cognição seja basicamente o escrutínio da diversidade dos processos mentais, acrescenta-se ao bojo do estudo neurocognitivo social a ideia de que tal ciência se trata, antes de qualquer coisa, sobre entender como entendemos as pessoas, sejam as outras ou a nós mesmos, sejam grupos ou indivíduos (Lieberman, 2007). Na medida em que vivemos em um mundo de constante interação social, é inegável a importância da compreensão dos processos fundamentais que guiam tal interação (Haase e cols., 2009; Lieberman, 2007). E a NCS, sendo uma disciplina recente, nos traz um leque repleto de possibilidades de pesquisa e atuação ainda não exploradas. E tal exame vai depender menos de impossibilidades teóricas ou técnicas, e mais da criatividade e disposição dos neuropsicólogos para entender de forma mais completa o ser humano e suas particularidades.


Referências:

Haase, V. G.; Pinheiro-Chagas, P.; & Arantes, E. A. (2009) Um Convite à Neurociência Cognitiva Social. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 2 (1), 43-49.

Lieberman, M. D. (2007) Social Cognitive Neuroscience: A review of core process. Annual Review of Psychology, 58, 259-289.

Ochsner, K. (2007) Social Cognitive Neuroscience: Historical Development, Core Principles, and Future Promise. Em: A. Kruglanski & Higgins, E. T. (Org.) Social Psychology: Handbook of Basic Principles, p. 39-66, 2ª Ed. New York: Guilford Press.

Pereira, M. E. (2011) Cognição Social. Em: L. Camino, A. R. R. Torres, M. E. O. Lima & M. E. Pereira (Org.) Psicologia Social: Temas e teorias. Brasília: Technopolitick.

Pereira, M. E.; Dantas, G. S.; & Alves, M. V. (2011). Estereótipos, automatismos, controle e a identificação de armas e ferramentas em diferentes contextos: resultados preliminares. Cultura e produção das diferenças: estereótipos e preconceito no Brasil, Espanha e Portugal, 77-105

4.6.12

Earworms

Postado por Marcus Vinicius Alves |


* publicado inicialmente no blog Feminino e Além

Em um mundo onde músicas de bandas pop estouram o tempo todo e possuem cada vez mais alcance, é quase impossível escapar destas pequenas gladiadoras do tormento humano, cada vez mais grudentas e insuportáveis. E algo similar a maioria das músicas deste estilo musical é a capacidade que elas tem de se apropriar do seu pensamento de forma intrusiva a qualquer momento em um looping infinito de tchus e tchás. Normalmente tal intrusão não dura muito mais que algumas horas, mas em alguns casos podem até durar por dias nessa repetição. Se você já passou por este sofrimento atormentador, ao menos uma boa notícia eu posso lhe dar: tem gente estudando o cérebro com o intuito de acabar de uma vez por todas com elas (as músicas, não as bandas… Ainda!).
Em primeiro lugar, vamos às definições, essa experiência de ter uma música repetindo constantemente em sua mente possui um nome, o termo usado para conceituar essa repetição de músicas desagradáveis é earworms (algo como “vermes de ouvido”). O neurocientista Oliver Sacks em um de seus últimos lançamentos, o livro “Alucinações Musicais”, sugeriu chamar esse fenômeno de “brainworms” devido ao fato dessa repetição acontecer em um nível cerebral, ou seja, você está processando a música como se houvesse um rastro de informações dela ainda despertas em nível neural (não é a toa que só pequenas partes são lembradas, como o refrão). Esse fenômeno também é conhecido na literatura científica como Síndrome da Música Encalhada/Presa (stuck song syndrome).
Em um pequeno conto, chamado de “A Melodia Definitiva”, Arthur Clarke – consagrado autor de “2001: Uma Odisséia no Espaço” – conta a história de um cientista chamado Gilbert Lister, que busca criar uma melodia que seja tão consonante com os processos elétricos do cérebro que consiga captura-los eternamente, digamos que uma espécie de música pop definitiva. O problema para o professor Lister é que assim que consegue a criação de sua “obra-prima” um revés ocorre: o poder de sua música é tamanho que ele mesmo termina a história em um estado semelhante a um coma. Esperamos que nenhuma música pop tenha a capacidade de fazer isso por enquanto, mas o exemplo do conto de Clarke serve para ilustrar razoavelmente bem o poder das earworms.
O fato de tal situação possuir até uma definição científica que permita investigá-la e estudos se aprofundando no tema para desvendá-lo pode sugerir que, no mínimo, este fenômeno seja bem comum. E realmente é, estudos confirmam que as earworms já foram experimentadas por um grande número de pessoas, acredita-se que em torno de 98% das pessoas já passou por esta experiência em algum momento em sua vida. Embora seja bastante comum, uma proporção inversa a essa presença habitual pode ser estabelecida para a sua capacidade de causar danos. As earworms tendem a ser bem pouco problemáticas. Para ser mais exato, com exceção de indivíduos que trabalhem com música ou que precisem em estar atento a tipos específicos de sons, ter uma música reverberando em seus pensamentos pouco te incomodará, provavelmente a earworm apenas vai lhe gerar certa frustração por não conseguir esquecer uma musica ruim ou até um pouco de constrangimento ao cantá-la baixinho no elevador ao lado de seus colegas de trabalho.
Devido a essa característica pouco deletéria, pouco se voltou para estudos sobre o tema, buscando entender ele e, quem sabe, criar estratégias para pará-los. Neurocientistas procuram buscar respostas para esse fenômeno, mas principalmente no aspecto clínico dele, como, por exemplo, pensamentos intrusivos que podem ser deletérios para pacientes com algum tipo de obsessão e que se assemelham de certa forma a essa repetição incontrolável experimentada nos earworms.
E o que faz essas músicas serem tão intrusivas assim? E em relação ao conteúdo, por que – normalmente – são as músicas que vão de encontro ao gosto musical do indivíduo que parecem possuir ainda maior poder de reverberação? Provavelmente as respostas para tais perguntas já foram encontradas. A tendência das certas músicas à repetição vem exatamente por sua estrutura simples, ou seja, batidas fortes e “fáceis” somadas a letras e melodias repetitivas. Em outras palavras, estamos extremamente mais suscetíveis à reverberar uma música de Justin Bieber do que uma complexa sonata.
Em relação à segunda pergunta, um psicólogo chamado Daniel Wegner criou uma teoria que chamou de “Teoria do Processamento Irônico”, que parece explicar bem o que acontece com as earworms e porque normalmente as músicas lembradas são as mais avessas aos gostos musicais pessoais. Pela teoria dele, sempre que tentamos forçadamente excluir algum pensamento de nossas mentes eles se tornam ainda mais fortes. É como se nossa consciência fosse um palco e o pensamento intrusivo estivesse na penumbra, sendo processado automaticamente e inconscientemente, até surgir debaixo dos holofotes e quanto mais intenso o esforço para expulsá-lo, mais focado nele o indivíduo fica.
Então a partir desta teoria é possível refletir um pouco sobre a solução para problemas de intrusão musicais. Se a consciência é um palco onde o pensamento earworms tenta surgir a todo momento, a proposta de alguns pesquisadores seria a de que, para afastá-lo, basta focar em outras tarefas que exigem muita concentração, o foco atencional em excesso acabaria gerando uma espécie de sobrecarga cerebral, não deixando espaço para mais um ator no palco, muito menos um indesejado. É uma hipótese.
Da próxima vez que você estiver com uma música presa em sua cabeça, tente utilizar esta estratégia e, se der certo, avise ao mundo.

ResearchBlogging.org Beaman CP, & Williams TI (2010). Earworms (stuck song syndrome): towards a natural history of intrusive thoughts. British journal of psychology (London, England : 1953), 101 (Pt 4), 637-53 PMID: 19948084

21.5.12

A guerra reduz seu cérebro

Postado por Marcus Vinicius Alves |


Que a guerra não é algo muito bom qualquer um poderia dizer, com exceção de alguns políticos inescrupulosos e grandes empresas que se sustentam do lucrativo mercado bélico. Que a violência tende a ser relacionada com desinteligência também não é algo novo, normalmente esse é até o argumento usado para tentar explicar atos agressivos por parte do senso comum. Embora esses pontos não sejam novos, resultados preliminares de um estudo parecem corroborar com esses dois argumentos. Os resultados indicam que soldados que combateram na Guerra do Golfo Pérsico e que apresentaram múltiplos sintomas negativos relacionados com a saúde tiveram uma redução do volume de duas áreas cerebrais relacionadas com a memória e a aprendizagem.
Neste estudo, os pesquisadores dividiram os veteranos de guerra em dois grupos por presença de sintomas – baixo e alto – baseado nos resultados de avaliação da saúde respondidos por eles após o retorno da guerra. Depois disso os pesquisadores classificaram os sintomas apresentados pelos soldados em vinte possíveis (incluindo esquecimento, dor de cabeça, fadiga, náusea, pele irritada e dores nas juntas), onde o normal seria apresentar no máximo cinco. O grupo experimental, com alta incidência de sintomas apresentava mais de cinco entre os vinte, e o grupo de baixa incidência apresentava menos de cinco sintomas.
Com técnicas de neuroimagem, os pesquisadores descobriram que os veteranos que apresentavam mais de cinco sintomas possuíam uma série de discrepâncias nas áreas cerebrais, principalmente a redução do volume de duas diferentes áreas, sendo elas o córtex e o giro do cíngulo anterior e rostral (este, por sinal, muito relacionado com analgesia por placebo).
Após a realização de uma bateria de testes de memória e atenção, os pesquisadores encontraram que o grupo com alto índice de sintomas obteve um desempenho pior na avaliação. Ainda é cedo para dizer que esses sintomas – e mesmo a redução das áreas cerebrais – estão relacionadas com a chamada “Síndrome da Guerra do Golfo”, doença relacionada com o enfraquecimento do sistema imunológico, ou mesmo que participantes de qualquer tipo de guerra estejam sujeitos a tal redução, mas ao menos uma conclusão é possível (mesmo que sirva só para terminar esse texto com uma afirmação humanista): guerra emburrece.

Lundberg, D. (1984). The American Literature of War: The Civil War, World War I, and World War II American Quarterly, 36 (3) DOI: 10.2307/2712739

Odegard, T., Cooper, C., Farris, E., Arduengo, J., Bartlett, J., & Haley, R. (2012). Memory impairment exhibited by veterans with Gulf War Illness Neurocase, 1-12 DOI: 10.1080/13554794.2012.667126

30.3.12

O enigma da experiência x memória

Postado por Marcus Vinicius Alves |


O psicólogo prêmio Nobel Daniel Kahneman deu uma palestra para o TED -  série de conferências sobre tecnologia, ciência e desenvolvimento - sobre as diferenças entre o que ele chama de "eu (self) da experiência" e o "eu (self) da lembrança", nomes arbitrários, claro, utilizados para poder ilustrar uma grande diferença que ocorre no nosso dia a dia em relação às experiências que temos e as "histórias" (ou recordações) que possuímos delas a partir de detalhes, como o resultado final, o valor da experiência etc. Relembrando muito a teoria da Dissonância Cognitiva e das Falsas Memórias.


* André Rabelo



Quem nunca brincou de tentar adivinhar o que outra pessoa estava pensando? Será que conseguiremos algum dia pedir para alguém pensar em alguma coisa e então adivinhar, sem que a pessoa fale absolutamente nada? Ao que parece, os primeiros passos para isso acontecer estão sendo dados pelo pessoal do Gallant Lab, na Universidade da Califórnia, Berkeley.
Eu já havia traduzido um texto no blog SocialMente comentando sobre o artigo publicado na revista Current Biology, onde o pessoal deste laboratório conseguiu, a partir de registros da atividade neural dos participantes, reconstituir de maneira aproximada as imagens que os participantes observavam. Neste link, tem o vídeo comparando as reconstituições obtidas com as imagens que de fato os participantes olharam.
ResearchBlogging.orgDesta vez, os destemidos membros deste laboratório publicaram um estudo na revista PLoS Biology onde eles conseguiram, novamente a partir da atividade neural, reconstruir palavras nas quais os participantes estavam pensando. Em outras palavras, eles conseguiram adivinhar a palavra que a pessoa estava pensando só a partir da atividade elétrica do cérebro dos participantes! Sim, é isto mesmo, você não está lendo nada errado!
Para alcançar este feito, os pesquisadores utilizaram um técnica invasiva de registro neural. Os registros  eletrocorticográficos (ECoG) são obtidos através de eletrodos colocados na superfície do cérebro, após uma incisão no crânio. Eu até pensei em trazer uma imagem para deixar mais claro como isso funciona, mas as imagens eram meio desagradáveis…
Após colocar estes fiozinhos na cabeça de 15 voluntários, os cientistas mediram a atividade elétrica de populações de neurônios em resposta a diversas palavras e frases emitidas por uma voz feminina gravada. A partir destes dados, os pesquisadores desenvolveram  um algoritmo (programa de computador) capaz de relacionar padrões de atividade neural com as estimulações auditivas. Com este algoritmo em mãos, eles mostraram então listas de palavras aos voluntários e pediram que eles escolhessem uma palavra  e pensassem nela. A partir da atividade neural dos voluntários enquanto pensavam na palavra e do algoritmo desenvolvido, os cientistas foram capazes de descobrir com uma grande acurácia as palavras nas quais os voluntários estavam pensando.
Apesar de ser um resultado assustador para alguns que querem proteger seus pensamentos, esta pesquisa pode beneficiar muitas pessoas que, por algum motivo, não conseguem controlar os músculos envolvidas na fala, apesar de não ter os mesmos prejuízos em sua capacidade cognitiva. Pessoas com paralisias graves como as que ocorrem em casos de tetraplegia, por exemplo, poderiam se comunicar utilizando um aparelho capaz de reconstruir as suas falas. Esta pesquisa, além de estimular nossas imaginações futuristas e contribuir para a melhor compreensão de como alguns processos cognitivos ocorrem no cérebro, pode ajudar algumas pessoas a voltar a falar com o simples pensamento!

Referências

Pasley, B., David, S., Mesgarani, N., Flinker, A., Shamma, S., Crone, N., Knight, R., & Chang, E. (2012). Reconstructing Speech from Human Auditory Cortex PLoS Biology, 10 (1) DOI: 10.1371/journal.pbio.1001251

* André Rabelo é estudante de graduação do curso de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Além de ser editor dos blogs Ciência - Uma Velha no Escuro e SocialMente, é colaborador do Blog de Astronomia do astroPT e do Bule Voador.

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