* Texto "Um Bom Momento Para o Estudo da Neurociência Cognitiva Social", publicado no Boletim da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia de Maio de 2012.
O
aumento expressivo da visibilidade dos argumentos neuropsicológicos
no cenário mundial parece denotar uma força crescente da
Neuropsicologia entre os psicólogos. Visibilidade esta que parece
estar também se expandindo progressivamente no âmbito nacional,
tendo em vista que os tópicos abordados na área e os achados
provenientes de estudos neuropsicológicos tem sido foco de um
interesse cada vez mais intenso não só por parte de estudantes do
comportamento, mas como da mídia e da população em geral.
Observando este quadro, talvez este seja um bom momento para que os
neuropsicólogos nacionais possam se dispor a investigações
interdisciplinares, não só visando aumentar sua área de atuação,
como também a solidez das suas teorias. Partindo da
interdisciplinaridade natural da Neuropsicologia e a possibilidade de
possíveis bons frutos provenientes desta postura, uma sugestão é a
de que os neuropsicólogos brasileiros passem a integrar cada vez
mais em suas investigações e práticas o estudo social do
comportamento, tema central da Psicologia Social.
Uma
característica da Psicologia Social é a de que mesmo durante os
anos em que imperou o argumento condutivista na psicologia, esta
disciplina foi uma das poucas áreas da ciência do comportamento a
não se privar do uso de estratégias de análise e conceitos
implicados em uma perspectiva mentalista (Pereira, 2011). Ainda
assim, embora exista uma atual posição hegemônica do estudo da
cognição social nesta disciplina, foi somente a partir de 1980 que
os manuais de Psicologia Social passaram a fazer referência
explícita à cognição como parte fundamental da compreensão do
comportamento, pois anteriormente – apesar de mentalistas – as
teorias não atribuíam à cognição esse papel (Pereira, 2011). Não
diferente do estudo da cognição já conhecido por neuropsicólogos
(Teoria do Processamento de Informação), o estudo da Cognição
Social também diz respeito à investigação de como as pessoas
processam, codificam, armazenam, representam e acessam informações,
embora esta esteja focada na natureza social deste processo (Haase,
Pinheiro-Chagas & Arantes, 2009; Lieberman, 2007; Pereira, 2011).
Sendo assim, parece possível estabelecer uma relação produtiva
entre a neuropsicologia e a psicologia social, estabelecendo entre
elas uma relação de trocas metodológicas, teóricas e de questões
empíricas (Hasse e cols., 2009).
A
Neurociência Cognitiva Social (NCS) é um campo interdisciplinar que
representa uma oportunidade para o estudo destes pontos de forma
contígua, ao atribuir ênfase ao conceito de mediadores cognitivos e
a tentativa de identificar como estes dispositivos mentais se inserem
em uma posição intermediária na tríade constituída pelo
comportamento e experiências sociais e emocionais e os substratos
neurais envolvidos com eles (Haase e cols., 2009; Ochsner, 2007;
Pereira, 2011), ao combinar as ferramentas da Neuropsicologia e da
Neurociência Cognitiva com as questões e teorias de várias
ciências sociais, incluindo a economia e as ciências políticas
(Lieberman, 2007). Logo, a dimensão cognitiva nessa disciplina é o
elo entre o comportamento social investigado pelos psicólogos
sociais e as bases neurobiológicas do comportamento, investigado
pelos neuropsicólogos (Haase e cols., 2009).
O
principal benefício para os neuropsicólogos na interação com
psicólogos sociais é poder usufruir de sua rica tradição teórica
e empírica consolidada em décadas sobre os mais diferenciados
comportamentos relevantes para a interação social humana, ganhando
valor heurístico para as suas próprias teorias (Haase e cols.,
2009). Apesar de sua existência recente, estudos da NCS já apontam
achados importantes tanto do ponto de vista teórico, quanto clínico.
Um bom exemplo do uso de alguns conceitos da psicologia social para
os neuropsicólogos vem de evidências
que têm demonstrado que as ações humanas são determinadas pela
atuação concomitante de dois grandes sistemas
cognitivos (Pereira, Dantas & Alves, 2011).
Um deles, biologicamente mais antigo, responsabiliza-se pela
expressão dos comportamentos automáticos, processos rápidos,
não-intencionais, emocionais e motivacionais, enquanto o segundo
sistema, de resposta mais lenta, destina-se a gerenciar as ações
controladas e mais sujeitas à intencionalidade, relacionadas com a
atenção e intenção
(Lieberman, 2007; Pereira e cols., 2011).
No quadro 1 são apresentadas algumas diferenças da atuação
destes sistemas:
Características
|
Sistema
1
|
Sistema
2
|
Quantidade
de esforço intencional
|
Exigem
pouco ou nenhum esforço intencional
|
Exige
esforço intencional
|
Grau
de consciência
|
Geralmente
fora do conhecimento consciente
|
Exige
conhecimento consciente
|
Uso
dos recursos de atenção
|
Pouco
uso
|
Muito
uso
|
Tipo
de processamento
|
Realizados
pelo processamento paralelo
|
Realizados
serialmente
|
Limiar
de processamento
|
Processamento
de estímulo subliminar
|
Processamento
de estímulo supraliminar
|
Erros
de processamento
|
Poucos
erros
|
Muitos
erros
|
Carga
de trabalho
|
Não
reduzem a capacidade de realizar outras tarefas
|
Reduzem
a capacidade de realizar outras tarefas
|
Tipos
de memórias relacionadas
|
Memória
não declarativa
|
Memória
declarativa e memória operacional
|
Quadro
1: Características
dos sistemas 1 e 2 de processamento de informações. Adaptado de
Pereira, Dantas & Alves (2011)
Utilizando
esse exemplo do sistema dual de processamento de informação, é
possível questionar até em que medida eles
poderiam estar relacionados com a expressão ou não de inibição de
certos comportamentos em, por exemplo, crianças com Transtorno do
Déficit de Atenção e Hiperatividade. Estaria tal criança sob a
regência imperiosa do Sistema automático de processamento de
informações e por isso não conseguiria controlar de forma plena
sua expressão comportamental? Tal investigação poderia resultar em
evidências ainda mais sólidas para a existência desse transtorno e
também para o tratamento? É esperado que, com o avanço de estudos
neuropsicológicos na área da cognição social, seja possível
trazer
uma maior compreensão de doenças cujo déficit na interação
social é pronunciado e auxiliar o tratamento de pacientes a partir
do entendimento de alguns fundamentos neuro-sociocognitivos (Haase e
cols., 2009).
Outro
ponto positivo nessa
troca entre disciplinas é o retorno na consistência teórica que os
estudos promovidos por neuropsicólogos disporiam para os psicólogos
sociais, pois ao passo que os neuropsicólogos obtêm os ganhos
supracitados, estes terminam por conferir a estes mesmos modelos
teóricos sociocognitivos critérios biológicos elegantes (Haase e
cols., 2009). Como exemplo, dados que
evidências que tais processamentos seriam também regidos por
diferentes regiões neurais, se tornando ainda mais sólida a
apuração desta teoria no momento em que se mostram corroborados com
estudos neurocognitivos (Lieberman, 2007).
A
NCS ocupa um ponto de intersecção entre grandes disciplinas, como é
possível ver na Figura 1. Os três círculos maiores representam
disciplinas tradicionais, enquanto que a NCS, pelo seu caráter
interdisciplinar, está localizada entre os campos das Ciências
Sociais e Neurociências, mas também podendo estabelecer contato com
a área da Saúde (Ochsner, 2007), o que manifesta uma clara riqueza
em possibilidades metodológicas e teóricas.
Ademais,
tendo em vista que a investigação da cognição seja basicamente o
escrutínio da diversidade dos processos mentais, acrescenta-se ao
bojo do estudo neurocognitivo social a ideia de que tal ciência se
trata, antes de qualquer coisa, sobre entender como entendemos as
pessoas, sejam as outras ou a nós mesmos, sejam grupos ou indivíduos
(Lieberman, 2007). Na medida em que vivemos em um mundo de constante
interação social, é inegável a importância da compreensão dos
processos fundamentais que guiam tal interação (Haase e cols.,
2009; Lieberman, 2007). E a NCS, sendo uma disciplina recente, nos
traz um leque repleto de possibilidades de pesquisa e atuação ainda
não exploradas. E tal exame vai depender menos de impossibilidades
teóricas ou técnicas, e mais da criatividade e disposição dos
neuropsicólogos para entender de forma mais completa o ser humano e
suas particularidades.
Referências:
Haase,
V. G.; Pinheiro-Chagas, P.; & Arantes, E. A. (2009) Um Convite à
Neurociência Cognitiva Social. Gerais:
Revista Interinstitucional de Psicologia,
2 (1), 43-49.
Lieberman,
M. D. (2007) Social Cognitive Neuroscience: A review of core process.
Annual
Review of Psychology,
58, 259-289.
Ochsner,
K. (2007) Social Cognitive Neuroscience: Historical Development, Core
Principles, and Future Promise. Em: A. Kruglanski & Higgins, E.
T. (Org.) Social
Psychology: Handbook of Basic Principles,
p. 39-66, 2ª Ed. New York: Guilford Press.
Pereira,
M. E. (2011) Cognição Social. Em: L. Camino, A. R. R. Torres, M. E.
O. Lima & M. E. Pereira (Org.) Psicologia
Social: Temas e teorias.
Brasília: Technopolitick.
Pereira, M. E.; Dantas, G. S.; & Alves, M. V. (2011). Estereótipos, automatismos, controle e a identificação de armas e ferramentas em diferentes contextos: resultados preliminares. Cultura e produção das diferenças: estereótipos e preconceito no Brasil, Espanha e Portugal, 77-105
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