Apesar de possuir um especial interesse e
atuação na etologia ao longo de sua carreira, o professor Dida, assim como
muitos outros etólogos brasileiros, tem se aproximado cada vez mais da
psicologia evolucionista e desenvolvido projetos especialmente situados nesta
área. Ele explorou com clareza algumas questões, muitas vezes mal
compreendidas, sobre o estudo dos animais na perspectiva evolucionista nesta
ótima entrevista cedida gentilmente por ele. Além disso, acreditamos que muitos
comentários do Dida acerca da realidade que pesquisadores brasileiros enfrentam
para conduzir suas pesquisas soarão familiares a muitos.
Dida, você pode nos
contar um pouco sobre os projetos de pesquisa que você está desenvolvendo em
seu grupo de pesquisa atualmente e sobre os projetos que estão a caminho?
Cheguei há dois anos
na UnB, e mantive o tema geral de pesquisa que desenvolvia antes na PUC-GO:
evolução da flexibilidade comportamental. No momento temos um grupo de pesquisa sobre
evolução humana que inclui dois projetos de mestrado. O Vinícius estuda como a
experiência prévia de relacionamentos influencia a forma com que homens e
mulheres sentem ciúmes. O outro projeto, da Ana Flávia, é sobre dieta –
investiga a relação entre neofobia alimentar (aversão a alimentos novos) e
doenças como a diabetes e obesidade mórbida.
Também pesquisamos o
comportamento de um primata muito interessante sob o ponto de vista da
flexibilidade comportamental – o macaco-prego. Este macaco se adapta a uma
grande variedade de ambientes devido a sua capacidade de explorar de formas
inovadoras – chega a usar pedras e outros objetos como ferramentas para
conseguir alimentos, por exemplo. Há dois projetos de mestrado em andamento.
Murilo está realizando experimentos para estabelecer se o uso de ferramentas
pode diminuir o estresse e melhorar as relações sociais de macacos em
cativeiro. Já o Túlio pesquisa a influência do fornecimento de alimentos por humanos
na forma com que os macacos se alimentam e se comportam socialmente.
A caminho temos um projeto da
Thalita, em parceria com a Dra Clotilde Tavares do ICB, e o Dr. Sérgio Leme,
sobre as interações entre os macacos-prego e humanos que visitam o Parque
Nacional de Brasília. Além de investigar a flexibilidade destes macacos (como
se adaptam à presença humana), o projeto irá ajudar o Parque a
"controlar" o número de conflitos entre os macacos e humanos, já que
os macacos às vezes roubam e ameaçam os visitantes.
Tenho ainda algumas parcerias, como, por
exemplo, um projeto que iniciei com o Dr. César Ades da USP, que infelizmente
faleceu recentemente, e que estou dando continuidade com o Dr. Didier Demolin
da IT-Grenoble (França), sobre a comunicação vocal de outro primata brasileiro,
o muriqui. Este projeto é uma retomada de minha pesquisa de doutorado, e temos
planos de enviar alunos para dar continuidade ao estudo. Participo também de um
grupo de pesquisa do CNPq chamado “Etologia Cognitiva”, coordenado pelos Drs.
Eduardo Ottoni e Patrícia Izar (USP) – o principal interesse é o uso de
ferramentas por macacos-prego. Com o Dr. Sérgio Leme, aqui do PPB, colaboro com
trabalhos sobre estresse e enriquecimento ambiental, como, por exemplo, em um projeto
sobre estresse e eficiência dos cães farejadores da Polícia Federal de
Brasília.
Como surgiu o seu
interesse pela sua área de pesquisa?
Eu “cismei” que ia estudar comportamento
animal aos 12 anos de idade, e deixei meus pais loucos com isso =); na época
quase ninguém falava em ecologia e meio ambiente, muito menos em etologia ou
PE. Meu interesse então era apenas os animais (não humanos), e fui falar com o
Dr. Walter Hugo de Andrade Cunha da USP, um pioneiro da etologia no Brasil. Ele
ficou meio surpreso com meu interesse meio precoce, mas me deu ótimas dicas e
alguns anos mais tarde fui estudar fora, nos EUA. Na Universidade meu interesse
pelos animais foi se tornando cada vez mais comparativo, ou seja, comecei a me
intrigar pela complexidade do comportamento humano e sua relação com o
comportamento de outros animais. Acabei me formando em Antropologia Física, e
me especializando em primatas não-humanos, o que inevitavelmente me fez pensar
em como o comportamento pode ser complexo e flexível. Com o tempo fui
acomodando também pesquisas sobre a flexibilidade do comportamento humano, e
acabei ingressando no grupo de “Psicologia Evolucionista” brasileiro. Hoje, a
maioria das pesquisas de que participo tem esse aspecto comparativo entre o
comportamento humano e o de outros animais, com ênfase na evolução da
flexibilidade comportamental.
A ideia de
flexibilidade comportamental é compatível com a perspectiva evolucionista?
“Evolução da
flexibilidade” é realmente uma expressão que pode gerar certa desconfiança, já
que por muito tempo se acreditou que a evolução de fatores biológicos, como a
genética e a ação de hormônios, levariam inevitavelmente a comportamentos pouco
flexíveis, com pouca ou nenhuma influência do meio ambiente. Mas isso é
lenda... Nem genes, nem ambiente determinam sozinhos o comportamento, e a
interação entre estes fatores pode ou não gerar flexibilidade.
Para entendermos a evolução do
comportamento humano temos que entender como a evolução gerou nossa enorme
capacidade de nos adaptar, de forma flexível, a diferentes contextos ambientais
e sociais. Nosso cérebro, principal responsável pela nossa flexibilidade
comportamental, é fruto da evolução biológica, mas é enorme e desenvolve
lentamente, de acordo com os estímulos que recebe do ambiente. A forma exata
com que ele vai produzir pensamentos, emoções e comportamentos depende,
portanto, da interação entre os genes que a pessoa herdou e o ambiente em que
ela vive, e esta interação é bastante complexa. Por exemplo, Einstein certamente
tinha genes muito favoráveis a um cérebro eficiente – genes que permitiram
estruturas cerebrais saudáveis, muitas sinapses, boa mielinização das células,
etc... Mas todas estas estruturas não teriam desenvolvido se não tivessem sido
reforçadas pela experiência ao longo de sua vida, com os estímulos e contextos
adequados. Se ele não tivesse nascido e crescido em um ambiente estimulante,
provavelmente não chegaria à teoria da relatividade.
Esta relação entre genes, sistema nervoso
e ambiente do indivíduo tem uma história evolutiva. O sistema nervoso de uma
minhoca, por exemplo, muda pouco em função de sua experiência de vida, e por
isso o comportamento destes animais é pouco flexível. Por outro lado, a
genética de animais mais próximos aos humanos, como os macacos, golfinhos e
outros mamíferos gera um sistema nervoso mais “plástico”, capaz de modificar
bastante em função dos estímulos que recebe, e por isso estes animais também
têm comportamento mais flexível. Resumindo, nossa inteligência e flexibilidade
comportamental são frutos de uma história evolutiva que merece ser estudada.
Qual é a importância
de estudos com animais para compreender o comportamento humano?
Este é outro assunto que costuma gerar
polêmica. Quando um pesquisador compara o comportamento humano com o de outro
animal, sempre há quem veja os resultados com ceticismo e reclama que nós
humanos somos diferentes. Em parte isto é verdade: somos realmente
diferentes... Mas as reclamações não fazem sentido - todas as espécies são
únicas de alguma forma, não só os humanos. A ideia do método comparativo não é
mostrar que duas espécies são iguais, muito menos mostrar que somos exatamente
como os animais. O método consiste em descobrir o que as espécies animais têm
em comum e em que diferem, e entender o porquê das semelhanças e diferenças. No
caso do ser humano, as comparações devem levar em conta o fato que a evolução
nos concedeu um cérebro “enorme” e consequentemente uma inteligência superior
que nos permite passar informações através de uma linguagem simbólica e de
valores culturais, por exemplo. Apesar disso, a cultura e a inteligência não
anulam as influências biológicas, que são fruto de uma história muito mais
antiga do que a “curta” história de evolução cultural. Quanto mais estudamos os
animais, mais entendemos como a evolução gera uma grande diversidade de padrões
comportamentais, e podemos aplicar isto para qualquer espécie, inclusive a
humana.
Compartilhamos muitas coisas com outros
animais, mas ainda assim “somos únicos”?
Humanos, chimpanzés e
bonobos são muito parecidos entre si do ponto de vista genético, e as três
espécies compartilham vários padrões de comportamento. Por exemplo, expressam
as emoções básicas, como o medo, a raiva, a surpresa, a felicidade e a tristeza
de forma bastante semelhante, usando os mesmos músculos. Nas três os filhotes
nascem muito despreparados e passam muitos anos sob o cuidado intenso de
adultos, e desenvolvem suas habilidades motoras e psicossociais lentamente. Por
outro lado, há diferenças marcantes entre estas espécies. Os bebês humanos
geralmente são cuidados por ambos os pais dentro de um núcleo familiar, já
nossos “primos” primatas são cuidados principalmente pelas mães, dentro de uma
sociedade com vários machos e fêmeas promíscuos. Os chimpanzés costumam
resolver os conflitos com brigas e hierarquias, os bonobos com sexo, e os
humanos de forma bastante variada, incluindo guerras entre países; nos
chimpanzés os machos são os dominantes, nos bonobos são as fêmeas, e nos
humanos há controvérsias =). Em outras palavras, conhecer o comportamento do
chimpanzé ajuda, mas não é suficiente pra explicar o comportamento nem mesmo de
seus parentes mais próximos, o bonobo e o ser humano. Como disse anteriormente,
é preciso entender como funciona a evolução para entender não só as
semelhanças, como também as diferenças. No caso dos humanos, algumas das
diferenças que temos com nossos parentes mais próximos tem a ver com o fato que
há cerca de 6 milhões de anos nossos
ancestrais passaram a habitar ambientes mais abertos e inóspitos, enquanto a
linhagem dos bonobos e chimpanzés permaneceram em ambientes de florestas, e só
passaram a habitar ambientes diferentes há muito pouco tempo.
Como se dá está
interação complexa entre as nossas predisposições genéticas e a cultura? Você
poderia dar um exemplo de como isso acontece?
Acho que o
comportamento reprodutivo humano é um bom exemplo desta interação entre as
influências da biologia, da inteligência e da cultura. A evolução nos deu
diversos mecanismos biológicos para lidar com a tarefa biológica da reprodução.
Na adolescência nosso corpo muda em função destes mecanismos biológicos, e de
repente passamos a reagir a estímulos e nos comportar de uma forma totalmente
nova. Por exemplo, passamos a nos interessar pelo sexo oposto, que antes
parecia não tão interessante assim; começamos a emitir sinais não verbais de
interesse e paquera que são iguais em todo o mundo; desde cedo somos atraídos
por características do sexo oposto que indicam bons genes (simetria, pele bonita,
saúde etc.). Há também evidências de algumas diferenças universais entre homens
e mulheres adultos em relação ao que procuram em seus parceiros ideais: os
homens se preocupam mais com a beleza física do que as mulheres; as mulheres
são em geral mais exigentes e se preocupam mais com qualidades relacionadas à
capacidade de gerar recursos (escolaridade, nível socioeconômico, ambição).
Estes são exemplos que indicam um papel importante da biologia na reprodução
humana, e há explicações evolucionistas para a origem dos mecanismos biológicos
reprodutivos, como argumenta o psicólogo evolucionista David Buss (ver, por
exemplo, o livro traduzido para o português: Paixão Perigosa).
Por outro lado, a biologia só gera
tendências que precisam desenvolver ao longo da vida. Várias áreas da
Psicologia mostram como o ambiente familiar, o meio social e os valores
culturais modelam estas tendências durante o desenvolvimento do indivíduo.
Aprendemos a nos conter quando é preciso, e como usar os sinais biológicos de forma
mais eficiente. Também procuramos características em nossos parceiros, como o
companheirismo e interesses similares, que ajudam o convívio, quando o
interesse é um relacionamento duradouro. Pessoas religiosas querem se casar com
pessoas religiosas. Estes são apenas exemplos que ajudam a entender porque
tanto homens como mulheres variam muito na forma com que são atraídos pelo sexo
oposto, e porque mudamos a forma de nos comportar e procurar parceiros conforme
aprendemos com o ambiente.
A PE tem ganhado espaço
no Brasil, mas ainda é uma abordagem nova por aqui. Como você vê a situação
atual da PE brasileira e a relação dela com outras áreas da psicologia?
A PE é uma área
relativamente nova da psicologia, nasceu nos EUA há poucas décadas. No Brasil
formou-se um grupo de pesquisa da ANPEPP em 2004, liderado pela Dra Maria
Emília Yamamoto da UFRN. O grupo tem crescido bastante desde então. Hoje somos
mais de 20 pesquisadores de diferentes Instituições de Ensino Superior que
colaboram entre si em diversos projetos. Alguns, como os Drs. Eduardo Ottoni,
Patrícia Izar, e o saudoso César Ades da USP, a Dra. Suemi Tokumaru da UFES, e
o Dr. Mauro Vieira da UFSC, começaram na etologia; outros, como as Dras. Maria
Lúcia Seidl-de-Moura da UERJ, Eulina Lordelo da UFBA, Ângela Donato Oliva da
UFRJ, e Regina Brito da UFPA, vieram de outras áreas da psicologia, em
particular da psicologia do desenvolvimento.
Eu acredito que a PE ganha muito quando
agrega conceitos e métodos de diferentes áreas. Queremos entender a relevância
da evolução para compreender como os humanos pensam e se comportam, mas não
podemos ignorar o que outras áreas têm a oferecer, em particular as
contribuições da psicologia cognitiva, da psicologia social, da psicologia do
desenvolvimento e mais recentemente das neurociências. Podemos fornecer teorias
sobre a origem evolutiva, as funções adaptativas e a influência de fatores
biológicos no comportamento, mas como vimos acima, isto não é suficiente para
explicar a complexidade do ser humano. Entender a evolução e biologia humana
sem dúvida é necessário, não deixamos de ser animais porque nos tornamos, nos
últimos 10.000 anos, capazes de dominar a natureza... mas precisamos também
levar em conta as outras dimensões do ser humano, como a cognição, a sociabilidade
e a cultura. Melhor ainda, precisamos entender como estas dimensões interagem
com a dimensão biológica, como genes e ambiente andam juntos para gerar nosso
comportamento altamente flexível.
É difícil ser um
pesquisador em psicologia no Brasil?
Para ser um
pesquisador em psicologia, é preciso ser professor de uma instituição de ensino
superior, de preferência uma que tenha um programa de pós-graduação. Há algum
tempo, isto significava principalmente dar aulas e fazer pesquisa. Hoje,
acredito que duas mudanças atrapalham um pouco a pesquisa. Primeiro, ser
professor virou um emprego multitarefas – ensino na graduação e na pós,
pesquisa, extensão, administração, orientação de alunos, representações em
comissões, divulgação na mídia, inúmeras reuniões burocráticas... Segundo, há
uma ênfase muito grande na quantidade, e menos na qualidade. Isto quer dizer
que para ser bem avaliado, o professor tem que fazer muito de cada uma dessas
tarefas. Em minha opinião, é a pesquisa que sofre mais com estas demandas. Fazer
pesquisa de boa qualidade requer tempo e dedicação – tempo para acompanhar a
literatura especializada, para planejar e executar a coleta, para analisar,
tempo para pensar! No fim, boa parte dos bons pesquisadores brasileiros
trabalham bem mais do que 40 horas semanais, e estão sempre correndo contra o
tempo com os prazos de editais e relatórios.
Existem mudanças que
facilitariam o seu trabalho?
Não sei como mudar
essa situação em curto prazo, só acho muito estranho que para ser professor
universitário passamos muito tempo no mestrado e no doutorado aprendendo
basicamente a fazer pesquisa, e depois lutamos para poder orientar e conduzir
pesquisas no tempo que nos sobra entre reuniões e outra tarefas. Bom, não posso
reclamar muito, porque estou em uma universidade muito boa, aonde a pesquisa é
valorizada e os alunos são muito bons e interessados em pesquisa. A gente
“sofre” um pouquinho, mas consegue levar os projetos adiante.
Qual foi o melhor
conselho que você já recebeu?
Meu pai gostava muito de uma parábola de um
escritor argentino, Constancio C. Vigil, sobre um velho sábio que era famoso
pelos conselhos infalíveis que dava aos mais jovens. O velho sempre pedia
segredo a respeito da conversa e sempre dava o mesmo conselho: “simplifica meu
filho, simplifica”. Ninguém sabia que o velho já era completamente surdo e,
portanto, nem fazia ideia de quais eram os problemas daqueles que o procuravam;
mas isso não importava, porque o conselho sempre funcionava.
Acho que a simplicidade e soluções simples
podem realmente ter grande utilidade pra muitas coisas, inclusive na pesquisa.
Isto não implica em fechar os olhos para as complexidades do mundo, mas sim ter
a capacidade de olhar o fenômeno tal e qual ele se apresenta. César Ades, por
exemplo, dizia a seus alunos que antes de retorcer uma ou mais teorias para
explicar o comportamento dos sujeitos de pesquisa, tínhamos que prestar atenção
ao que os animais (sujeitos) nos diziam com seu comportamento, mesmo que eles
nos decepcionassem um pouco pela simplicidade. Pensar assim é geralmente útil
pra se chegar a boas hipóteses e métodos para testá-las... se a realidade for
mais complexa, nos aproximamos dela passo a passo, eliminando primeiro
explicações mais simples.
Você recomenda alguma
leitura para quem se interessa pela sua área?
Nosso grupo de PE na
ANPEPP publicou recentemente um livro pela editora Guanabara Koogan, que
acredito ser um bom texto inicial para quem tem interesse em conhecer a área.
Otta,
E., & Yamamoto, M. E. (2009). Psicologia evolucionista. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
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Esta série de entrevistas é uma parceria entre
os blogs SocialMente e Cogpsi. Visite-nos para conhecer um pouco mais sobre
psicologia!
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