O professor Vitor Geraldi Haase é coordenador do Laboratório de
Neuropsicologia do Desenvolvimento (LND-UFMG) na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Configurando-se hoje como um dos maiores pesquisadores na área
de neuropsicologia, tanto a nível nacional quanto internacional, o professor
Vitor foi recentemente aprovado em primeiro lugar no concurso de professor
titular da Psicologia da FAFICH-UFMG. Além de imerso em diversos projetos de
pesquisa, ele escreve o blog Neuropsicologia e
desenvolvimento humano,
mais voltado para a divulgação de conhecimento científico na área, e o
blog Reabilitação neuropsicológica, voltado para divulgar informações a
pacientes e às suas famílias. Vejam esta ótima e profunda entrevista que o
professor Vitor gentilmente nos cedeu, comentando sobre os mais diversos
problemas não apenas da neuropsicologia, mas da psicologia de maneira mais
ampla, estreando a nossa série Psicologia Brazuca em
grande estilo!
Vitor, você poderia
nos falar um pouco sobre os projetos de pesquisa que você tem conduzido no seu
grupo de pesquisa e sobre os futuros projetos?
O Laboratório de Neuropsicologia do
Desenvolvimento (LND-UFMG), por mim coordenado, tem por objetivo a realização
de pesquisas para desenvolver instrumentos neuropsicológicos de diagnóstico e
intervenção para indivíduos com transtornos do desenvolvimento e suas famílias.
As linhas de pesquisa são organizadas em torno de quatro eixos temáticos:
dificuldades de aprendizagem de matemática, síndromes genéticas, infecção
pediátrica por HIV/AIDS e paralisia cerebral.
Dificuldades de aprendizagem da matemática
Todos os nossos projetos de pesquisa,
inclusive o projeto sobre discalculia, foram aprovados pelo Comitê de Ética em
Pesquisa (COEP) da UFMG. O projeto sobre discalculia vem sendo conduzido desde
2008 em uma colaboração internacional com os professores Klaus Willmes da
Universidade de Aachen, Alemanha, e Guilherme Wood, da Universidade de Graz,
Áustria.
As dificuldades de aprendizagem da matemática
ou discalculia do desenvolvimento são menos conhecidas do que as dificuldades
de aprendizagem da leitura, mas não menos importantes. O termo discalculia se
refere a indivíduos com dificuldades graves na aprendizagem da matemática,
principalmente em aspectos muito básicos, tais como estimação de grandezas,
realização de cálculos simples e aprendizagem dos fatos aritméticos. Uma
observação frequente é que a criança ou jovem precisa contar nos dedos ou se
usa dos algoritmos de cálculo de forma ineficiente. A prevalência situa-se em
torno de 3% a 6% das crianças em idade escolar e a discalculia é de natureza
persistente, constituindo-se em fator de risco para desemprego, baixa renda e
problemas relacionados com psicopatologia.
Os objetivos das nossas pesquisas com
discalculia dizem respeito à caracterização dos mecanismos cognitivos e
validação de procedimentos diagnósticos e de intervenção. Do ponto de vista dos
mecanismos a discalculia é muito heterogênea. Pode estar relacionada a déficits
no processamento fonológico, tais como aqueles observados na dislexia. Neste
caso, o comprometimento maior é da aquisição e resgate dos fatos aritméticos e
resolução de problemas verbalmente formulados. A memória de trabalho e funções
executivas também são afetadas nos casos de discalculia, podendo explicar
aqueles casos que se associam ao transtorno do déficit de atenção por
hiperatividade. Finalmente, um grupo menor de crianças apresenta uma
discalculia pura, associada a um déficit no senso numérico. Ou seja, ou
capacidades muito básicas de estimação de grandezas, as quais impedem o
desenvolvimento do conceito de número e outras habilidades. Nos casos de
déficit no senso numérico as dificuldades são bem mais graves.
A pesquisa sobre os mecanismos da discalculia
é importante porque ajuda a formular estratégias educacionais mais
individuailizadas e eficientes. No que se refere às intervenções estamos
trabalhando em várias frentes. Uma delas diz respeito aos estilos
disciplinares. As dificuldades escolares fazem com que pais e educadores
recorram a técnicas punitivas de modificação do comportamento, uma vez que as
dificuldades da criança são atribuídas a "preguiça" ou falta de
engajamento e motivação. Entretanto, ao invés de resolver o problema, as
técnicas punitivas tendem a agravá-los, diminuindo também a auto-estima da
criança e podendo contribuir para comportamentos de rebeldia ou agressividade.
O nosso trabalho consiste em auxiliar pais e professores, através de
procedimentos de aconselhamento e treinamento, a adotarem um estilo disciplinar
não-coercivo, mais liberal, baseado no incentivo e não na punição. Também
trabalhamos com cognitivas propriamente ditas, para melhorar a atenção, memória
de trabalho, funções executivas, senso numérico, fatos aritméticos, resolução
de problemas etc.
O diagnóstico e atendimento adequado às
crianças com dificuldades de aprendizagem da matemática são muito importantes,
uma vez que o mau desempenho escolar se associa a transtornos de comportamento
e baixo auto-estima, contribuindo para isolar socialmente e discriminar os
indivíduos afetados e suas famílias. O diagnóstico e as explicações científicas
relacionadas aos mecanismos subjacentes permitem que o indivíduo afetado e sua família
reconstruam seus selves,
permitindo-se recuperar seu bem-estar e funcionalidade.
A frequência e gravidade dos problemas de
aprendizagem, inclusive da matemática, indicam que há a necessidade de se
construir um sistema público de diagnóstico e atendimento multidisciplinar para
as crianças e jovens afetados e suas famílias. A falta de acesso a serviços públicos
de diagnóstico e terapia é um fator que contribui para cercear oportunidades de
desenvolvimento e acesso às carreiras melhor remuneradas para os indivíduos
afetados e suas famílias.
Síndromes genéticas
Estamos trabalhando com a
caracterização do perfil neuropsicológico de diversas síndromes neurogenéticas,
tais como síndrome de Turner, síndrome velocardiofacial, síndrome de Williams
etc. Este trabalho é realizado em parceria com diversos pesquisadores e instituições.
Através de um financiamento da FAPEMIG a Profa. Maria Raquel Santos Carvalho do
ICB-UFMG está disponibilizando técnicas de diagnóstico genético-molecular para
o SUS. Estamos iniciando uma parceria com a Associação Brasileira da Síndrome
de Williams, através de sua presidente, Sra. Jô Nunes. Em 3 demarço vai ocorrer
na UFMG um encontro entre pesquisadores e familiares.
Também temos uma parceria com as Profas.
Camila Dininno da PUC Minas e Célia Giacheti da UNESP de Marília para o estudo
da síndrome velocardiofacial. Apesar de pouco conhecida, a síndrome
velocardiofacial ou microdeleção do cromossoma 22q11.2 é uma das síndromes
genéticas mais frequentes, com ocorrência em torno de 1 para 2000 na populaão.
Além de uma facies característica, disfonia, insuficiência do véu palatino,
malformações congênitas e atraso no desenvolvimento, a síndrome
velocardiofacial é uma causa frequente de transtornos de aprendizagem,
principalmente da matemática, e um fator de risco para esquizofrenia.
Recentemente apresentamos no XXX Workshop on
Cognitive Neuropsychology em Bressanone, Itália, um trabalho mostrando que os
indivíduos com síndrome velocardiofacial apresentam um déficit importante no
senso numérico, o qual não é explicado pela presenção muitas vezes associada de
retardo mental. Profissionais, pacientes e familiares interessados em
participar da pesquisa podem nos contatar através do telefone 31/34096295.
Infecção pediátrica por HIV/AIDS
As nossas pesquisas sobre a neuropsicologia da
HIV/IADS são conduzidas em parceria com o Prof. Jorge Andrade Pinto da
Pediatria UFMG, Centro de Referência Orestes Diniz para Doenças
Infecto-contagiosas, e National Institutes of Health dos EUA. O nosso principal
resultado até o momento com a AIDS é que as crianças e jovens com AIDS
apresentam inteligência normal e um comprometimento cognitivo relativamente
leve em funções executivas relacionadas a áreas pré-frontais do cérebro. Quer
dizer, aspectos mais básicos do funcionamento cognitivo, tais como a
inteligência, estão preservados. Quase não se observam mais casos de
encefalopatia ou retardo mental. Os comprometimentos observados ocorrem em
funções mais complexas, relacionadas à atenção, controle sobre as operações
mentais mais sofisticadas, resolução de problemas, planejamento etc. Isto
é muito importante porque atesta o sucesso do programa brasileiro de prevenção
e tratamento da AIDS pediátrica. A prevenção da transmissão vertical impede que
novos bebês sejam infectados. Por outro lado, os que já estão infectados têm
uma sobrevida e qualidade de vida cada vez melhores. Atualmente estamos investigando o impacto
das disfunções executivas que observamos sobre o rendimento escolar e qualidade
de vida.
Paralisia cerebral
Das pesquisas sobre paralisia cerebral já
resultaram baterias de testes para o diagnóstico de funções executivas
(BIFE-UFMG), habilidades visoespaciais (BACE-UFMG) e processamento lexical
(BANPLE-UFMG) para crianças com idade mental entre 4 e 6 anos de idade. Também
desenvolvemos um conjunto de "core sets" ou categorias nucleares para
a aplicação da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e
Saúde (CIF) no contexto da paralisia cerebral. A CIF é um sistema de categorização
das consequências funcionais das condições de saúde desenvolvido pela
Organização Mundial da Saúde, o qual se baseia em um modelo
biopsicossocial das relações entre aspectos orgânicos, psicológicos e sociais
que potencialmente afetam o funcionamento e bem-estar do indivíduo e sua
família. O modelo da CIF está crescentemente sendo adotado como referencial
teórico para a reabilitação neurológica e neuropsicológico. Entretanto, a CIF é
complexa e sua aplicação clínica depende de pesquisas como as nossas, as quais
contribuem para operacionalizar seus conceitos. Estas pesquisas estão
contribuindo para um melhor reconhecimento das necessidades de reabilitação
apresentadas pelos indivíduos afetados e suas famílias, bem como para o
desenvolvimento de medidas de desfecho mais válidas e intervenções mais
eficazes.
Também estamos trabalhando com a representação
do corpo em crianças com paralisa cerebral hemiplégicas. Nossas pesquisas
mostraram que 30% das crianças hemiplégicas apresentam agnosia ou negligência
do lado afetado do corpo em tarefas bimanuais. Ao contrário do que acontece no
adulto, no qual a hemissomatoagnosia ocorre predominantemente após lesões
do hemisfério direito, em crianças a hemissomatoagnosia surge após
comprometimento de qualquer um dos dois hemisférios cerebrais. A
hemissomatoagnosia compromete a funcionalidade da criança, interferindo com os
resultados da reabilitação. Desenvolvemos uma bateria neuropsicológica e
um procedimento de observação clinica para o diagnóstico de hemissomatoagnosia
em crianças com paralisia cerebral hemiplégica e estamos captando recursos para
um projeto de reabilitação usando neurofeedback.
Quais são os planos
para o futuro?
Estamos em uma fase muito boa. Esta semana (14/02/2012) eu fui aprovado em primeiro lugar no
concurso de professor titular da Psicologia da FAFICH-UFMG e isto deve melhorar
a nossa capacidade de financiamento de pesquisa. Adquirimos equipamento de eletroencefalografia e potenciais evocados
cognitivos, os quais devem melhorar nossa capacidade de localizar temporalmente
os déficits cognitivos nas diversas etapas do processamento de informação. Um
doutorando está sendo treinado pelo Prof. Guilherme Wood no uso de EEG em Graz
e as pesquisas aqui no LND devem se iniciar em setembro, em colaboração com o
Prof. Carlos Julio Tierra da Engenharia da UFMG. Também em colaboração com
o Prof. Carlos Julio e Guilherme elaboramos um projeto para utilização de
neurofeedback na reabilitação de crianças com discalculia e paralisia cerebral.
Estamos torcendo para que o projeto seja aprovado e possamos adquirir os
equipamentos. Estamos procurando expandir nossas parcerias internacionais,
melhorando o perfil das nossas publicações e aumentando a nossa participação no
cenário científico internacional. Também estamos consolidando o nosso
ambulatório, chamado Número, o qual se destina ao atendimento de crianças e
jovens com dificuldades de aprendizagem da matemática e síndromes genéticas.
Quem tiver interesse em recorrer aos nossos serviços pode entrar em contato através
do telefone 31/34096205. Na primeira semana letiva de cada semestre é
feita uma triagem para verificar a indicação de atendimento em nosso ambulatório.
A triagem se faz necessária porque os serviços são gratuitos e a demanda é
grande.
Como surgiu o seu
interesse pela sua área de pesquisa?
A neuropsicologia foi o modo de eu conciliar
interesses humanísticos com uma perspectiva biológica, científico-natural. Eu
acredito muito em consiliência. Ou seja, na validação convergente de resultados
empíricos a partir de diferentes perspectivas ou tradições de pesquisa. A
realidade é muito complexa e o método indutivo usado pelas ciências têm suas
limitações. A principal delas é a impossibilidade de demonstrar hipóteses,
apenas de refutá-las. Isto faz com que a consiliência ou validação convergente
seja o caminho. À medida que subimos de nível do físico, químico, biológico
para o psicológico e social, ganhamos crescentemente em graus de liberdade
quanto ao determinismo. Ou seja, emergem propriedades. Mas os pesquisadores nos
níveis mais altos da hierarquia da realidade humana não têm liberdade total. Não
podem postular ontologias descoladas da realidade física e biológica. Do ponto
de vista psicológico, a biologia é uma fonte valiosa de restrições, as quais
nos permitem vislumbrar a arquitetura e o funcionamento do sistema. A
neuropsicologia me coloca em contato com as grandes questões filosóficas da
ética, ontologia e epistemologia, mas a partir de uma perspectiva empírica. O
neuropsicólogo lida com os mesmos temas do filósofo. Só que o filósofo trabalha
com argumentos enquanto o neuropsicólogo trabalha com a mensuração do
desempenho de pacientes, inferindo a arquitetura do sistema cognitivo e suas
relações com o a estrutura e função cerebral.
Técnicas como a de
neurofeedback e estimulação transcraniana tem representado avanços importantes
na área. Quais são as vantagens e desvantagens das técnicas usadas na neuropsicologia
e na neurociência cognitiva e o que elas podem nos dizer?
Conheço os trabalhos sobre implantação de
eletrodos em estruturas dos gânglios da base e estimulação em pacientes com
Parkinson. Os resultados destes estudos são em grande parte paradoxais. Por
vezes os pacientes melhoram, outras pioram. Ou melhora alguns aspectos e pioram
outros. Acho que esta é uma área que ainda não é bem conhecida. Mas não
sou especialista no assunto.
A estimulação magnética transcraniana é
realmente uma técnica que trouxe uma contribuição importante à neuropsicologia.
Todas as outras técnicas são correlacionais. Ou seja, o neuropsicológo observa
que uma determinada lesão se associa com um dado padrão de alterações
comportamentais ou cognitivas. Mas não pode ter certeza de que é a lesão que
causou a alteração do comportamento. A natureza correlacional dos dados
anátomo-clinicos não permite estabelecer de forma definitiva que as relações
entre cérebro e comportamento são de causa e efeito.
Em alguns casos excepcionais é até possível
fazer inferências causais. Um caso justamente famoso é o de um professor que
começou a ter comportamentos pedófilos. Viu-se que ele tinha um tumor
raríssimo, um hamangiopericitoma nas regiões frontais subcorticais. O paciente
foi operado e melhorou. Posteriormente, o quadro de pedofilia retornou e
verificou-se que o tumor havia recidivado. O relato deste caso demonstra
através de um delineamento ABAB que existe uma relação causal entre o tumor e a
alteração do comportamento.
A estimulação magnética transcraniana é
importante por se tratar de uma técnica de causar "lesões" ou
ablações funcionais reversíveis em indivíduos normais. Faz-se um pré-teste e
constata-se que a função é normal. Faz-se a ablação funcional e verifica-se que
foi induzida uma síndrome ou déficit neuropsicológico. Posteriormente
observa-se a normalização da função. A estimulação magnética transcraniana é,
portanto, uma técnica que permite fazer inferências causais entre e estrutura e
função no cérebro.
Mas a estimulação magnética transcraniana
também tem suas limitações. Uma delas é que nem todas as áreas cerebrais são acessíveis.
Apenas o córtex e principalmente nas regiões frontais e temporais. Acho,
entretanto, que a principal limitação é que a estimulação magnética
transcraniana se associa ao risco de induzir crises convulsivas. Como
ferramenta de investigação das correlações anátomo-funcionais seu uso se
restringe a situações específicas em ambiente médico-hospitalar.
Que eu saiba, o principal uso terapêutico que
está sendo feito da estimulação magnética transcraniana é no tratamento da
depressão. Esta técnica está começando a substituir a eletroconvulsoterapia.
O surgimento e consolidação dos métodos de
neuroimagem funcional nos últimos 30 anos fez com que o interesse por estudos
de pacientes ou estudos de caso tenha diminuído bastante nos últimos anos.
Atualmente, periódicos como Neuropsychologia e Cortex publicam majoritariamente
estudos sobre neuroimagem. O número de estudos com pacientes vem diminuindo.
Por outro lado, tanto a neuroimagem quanto as
técnicas de simulação em redes neurais têm sugerido fortemente que o
processamento de informação ocorre de forma distribuída e paralela no cérebro.
Estes avanços metodológicos e conceituais levaram a uma reformulação do
tradicional conceito de localizacionismo em neuropsicologia. Hoje em dia se
fala em localizacionismo distribuído.
Todos estes avanços são importantes. É
preciso, entretanto, lembrar que tanto o método científico quanto suas diversas
tecnologias se associam a limitações. Algumas questões os pesquisadores
simplesmente não podem investigar devido a restrições éticas ou a limitações
tecnológicas. p. ex., os estudos de neuroimagem funcional mostram padrões
distribuídos de ativação. Mas como a resolução temporal destes estudos é muito
baixa, não se pode excluir que os padrões distribuídos de ativação registrados
em uma janela temporal de alguns segundos correspondam a ativações sequenciais
em uma janela temporal de dezenas ou centenas de milissegundos.
Um estudo com registro de potenciais elétricos
corticais em pacientes submetidos a cirurgia para epilepsia mostrou justamente
isto. Ou seja, que os padrões distribuídos captados pelo sinal BOLD da fMRI na
verdade correspondem a uma sequência muito precisa de ativação quando os dados
são analisados com uma resolução temporal maior (Ned Sahin, Science, October
2009).
A conclusão então é que o cérebro processa
informação tanto de modo distribuído quando paralelo. Os estudos de neuroimagem
funcional atual têm limitações importantes quanto à resolução temporal e aquilo
que parece ser um padrão distribuído simultâneo pode corresponder, na verdade,
a uma ativação sequencial numa escala de tempo mais acurada.
Os padrões de ativação distribuídos também se
associam a outra limitação das técnicas atuais de neuroimagem funcional. A
variabilidade interindividual é muito grande. A variabilidade interindividual
pode se dever tanto a diferenças anatômicas e funcionais do cérebro quanto ao
tipo de estratégia empregada pelo participante da pesquisa. Assim, das diversas
áreas ativadas na fMRI durante a realização de uma dada tarefa, algumas podem
ser essenciais e outras não. A ativação de algumas áreas pode corresponder
apenas a idiossincrasias relacionadas ao modo como os poucos indivíduos
investigados executam a tarefa. A fMRI não pode identificar dentre todas as
áreas ativadas quais são cruciais para a tarefa e quais desempenham um papel
apenas acessório.
Somente os estudos com pacientes têm o
potencial de identificar quais áreas cerebrais constituem conditio sine qua non para a implementação de uma dada função. Se
uma área é ativada em um estudo de neuroimagem, posso concluir ela pode ter
alguma coisa a ver com alguma função. Mas não posso saber jamais quão importante
esta área é. Por outro lado, se uma lesão abole uma função, então posso inferir
que a área desempenha um papel crucial para a função.
Da mesma forma, se um estudo de simulação em
computador consegue implementar uma dada função cognitiva, isto não autoriza a
realizar a inferir que o cérebro se comporta da mesma maneira. Redes
conexionistas simuladas em computador mostram que da dinâmica de sistemas
relativamente simples e com pouca programação prévia podem emergir funções
relativamente complexas. Mas isto não autoriza ninguém a inferir que o cérebro
funciona da mesma maneira.
Apesar de serem relativamente desvalorizados
atualmente, os estudos de pacientes e de casos isolados continuam sendo
importante. Somente os estudos de pacientes permitem uma testagem mais completa
de hipóteses causais. Os estudos de neuroimagem e redes neurais funcionam bem
no contexto da descoberta, permitindo gerar hipóteses anátomo-funcionais.
Somente os estudos de pacientes e de estimulação magnética transcranianas
permitem falsificar hipóteses. Ou seja, se um estudo de imagem mostra a
ativação de uma área por uma tarefa, então pode-se concluir que a tal área está
potencialmente implicada na tarefa. Por outro lado, se um estudo de paciente ou
de estimulação magnética mostra que uma função não é comprometida por uma dada
lesão ou ablação funcional isto significa que aquela área não é crucial, apenas
acessória para a tarefa.
Existe, portanto, uma complementaridade de
métodos em neurociência cognitiva. Cada abordagem, neuroimagem funcional e
neuropsicologia, tem seu papel. O que nós pesquisadores precisamos fazer é
aprender a utilizar e complementar os resultados de cada método a partir de uma
filosofia experimental de teste de hipóteses. Mas é inegável o fascínio
que as pessoas sentem pela observação de figurinhas coloridas do cérebro.
Como a neurociência
pode contribuir para a educação?
A neurociência pode e está contribuindo muito
para a educação. Vou mostrar como isto acontece discutindo um trabalho
publicado em 2008 por Eveline Crone da Universidade de Leiden. O artigo saiu na
revista Journal of Neuroscience e usou fMRI para investigar os
efeitos do feedback positivo e negativo na aprendizagem por regras. Os
participantes precisavam realizar uma tarefa de discriminação de estímulos
visuais usando uma de duas regras alternativas. Era preciso descobrir a regra
correta a ser empregada a partir do feedback fornecido, dizendo se a resposta
havia sido correta ou incorreta.
No cérebro de adultos acontece assim. Em uma
tarefa na qual o indivíduo precisa monitorar sua atividade são ativadas áreas
no córtex pré-frontal medial dorsal, em torno do córtex cingulado anterior.
Sempre que o indivíduo recebe um sinal de erro, o cíngulo anterior é ativado,
repassando este sinal para o córtex pré-frontal dorsolateral, para análise
ulterior, planejamento e solução de problemas. Em registros
eletroencefalográficos este sinal é conhecido como error-related
negativity. É uma coisa clássica.
O grando tchan do experimento conduzido por
Eveline Crone foi descobrir que as crianças somente se beneficiam da mensagem
de erro, ativando o giro do cíngulo anterior, a partir dos 12 anos de idade.
Antes desta idade o feedback negativo não melhora o desempenho. Só o feedback
positivo melhora o desempenho em crianças menores do que 12 anos. A
conscientização do erro não ajuda.
A implicação pedagógica é óbvia: É mais
eficiente elogiar a criança quando ela acerta do que corrigi-la quando ela
erra.
Tem alguma novidade nisto? Tem e não tem.
Agora sabemos quais são as áreas cerebrais envolvidas em um fenômeno
muito conhecido em análise experimental do comportamento. Ou seja, o erro
prejudica a aprendizagem. A punição é menos eficiente do que o reforço. O
ensino escolar se beneficia muito de estratégias de aprendizagem sem erro,
ensino programado etc. De certa maneira, as professoras já fazem isto. No caso
da ortografia, p. ex., no início vale tudo. É só a partir da quarta série que
as crianças começam a ter a ortografia sistematicamente corrigida. Talvez na
quarta série seja cedo demais. Para algumas crianças pode ser cedo demais, para
outras não, uma vez que existe variabilidade inter-individual etc.
Eu fiquei fascinado quando li o artigo da
Eveline Crone. O trabalho mostra o potencial que a neurociência tem para a educação.
Mas mostra, sobretudo, o potencial que a psicologia cognitiva e comportamental
sempre tiveram para a educação. Potencial este que nem sempre é aproveitado. Na
maioria das vezes não é aproveitado. Há um fascínio enorme em pedagogia pelo
sócio-construtivismo em detrimento de outras correntes teóricas. Conceitos e
métodos da psicologia comportamental e cognitiva são aplicados intuitivamente
pelas professoras. Mas não existe um estudo sistemático e uma formação das
educadoras em psicologia comportamental, cognitiva e neuropsicologia. Talvez
isto venha a mudar com a neurociência e com o atrativo das figurinhas
coloridas. Mas a psicologia está e sempre esteve aí.
O aluno de graduação
em psicologia no Brasil vive um contexto acadêmico conflituoso e até mesmo
hostil às vezes. Este problema remete a um conflito mais amplo entre abordagens
na psicologia. Como você vê este embate intelectual no Brasil e no mundo?
A psicologia é uma área muito heterogênea, na
qual diversas abordagens teóricas, epistemológicas e até mesmo éticas são
possíveis. De um modo geral, é possível seguir a discussão na filosofia sobre
os conceitos de Erklären e Verstehen para categorizar as diversas
abordagens. Erklären significa
explicar, sendo o objetivo das ciências naturais, empíricas e quantitativas.
Explicar significa validar um modelo mecanicista de relações de causa e efeito,
com base no método científico de testagem e falsificação de hipóteses. Verstehen, por outro lado, significa
compreender, sendo o objetivo das disciplinas hermenêuticas, ou
interpretativas. O objetivo das disciplinas hermenêuticas é dar sentido à
realidade, à vivência subjetiva. Ambos os objetivos são perseguidos por
abordagens distintas na psicologia. A psicologia cognitiva experimental, a
psicobiologia e a neuropsicologia têm por objetivo a explicação causal dos
fenômenos psicológicos, servindo-se do método científico-experimental de teste
(falsificação) de hipóteses e buscando construir modelos mecanicistas de
relações causais. A tradição científico-natural contemporânea tem suas origens
em William James (mente como processo), Charles Darwin (mente como adaptação) e
Carl Wernicke (localização cerebral dos processos psicológicos).
Na tradição hermenêutica, que caracteriza o
existencialismo/humanismo, psicanálise e psicossociologia, o objetivo da
psicologia é construir um referencial interpretativo que auxilie na atribuição
de sentido psicológico à experiência subjetiva humana. Se caracterizarmos a
ciência pelo método hipotético-dedutivo-experimental, então estas disciplinas
não são ciência. Seu conhecimento é de outro tipo. Mais relacionado com a
sabedoria. Eu gosto de pensar assim: a perspectiva hermenêutica
trata a experiência subjetiva como variável independente, quase lhe atribuindo
um estatuto de fator explicativo causal. Já na perspectiva científico-natural,
a subjetividade é concebida como uma variável dependente, ou seja, algo que
precisa ser explicado em função de fatores genéticos, da estrutura
anátomo-funcional do cérebro, das experiências de aprendizagem etc.
As duas abordagens, científico-natural e
hermenêutica, não deveriam ser incompatíveis. A relação entre elas deveria ser
de complementaridade. Esta relação de complementaridade faz todo sentido do
ponto de vista epistemológico. Os fenômenos psicológicos são muito complexos.
Estudá-los a partir de múltiplas perspectivas somente contribui para enriquecer
o conhecimento. Na prática não é assim. Uma das maiores dificuldades é que as
diferentes correntes partem de pressupostos ontológicos, epistemológicos,
éticos e até mesmo políticos muito distintos. Lá pelas tantas o diálogo se
torna impossível. O grande psicólogo matemático norte-americano Paul Meehl
brincava assim: aquilo que é foco de pesquisa para um psicólogo constitui o
termo de erro para um psicólogo de outra corrente.
Em parte o problema deriva da própria
complexidade dos fenômenos psicológicos. Mas, na maior parte o problema se deve
a divergências éticas e políticas, agravadas pelas tendências hegemônicas dos
diversos grupos de pesquisadores. A tendência dos pesquisadores é se
agruparem na academia em igrejinhas, procurando adquirir poder,
reforçar-se mutuamente e impor-se ou até mesmo eliminar as correntes e
grupos rivais.
A questão torna-se mais complexa ainda quando
levamos em consideração que os interesses de muitos grupos acadêmicos são
mais políticos do que científicos. Nas universidades, principalmente federais,
mas também em associações científicas e profissionais, pode-se observar um
acentuado predomínio de grupos políticos cuja principal ocupação é
instrumentalizar a atividade acadêmica com o objetivo de promover as
transformações sociais por eles consideradas necessárias. Isto é feito a partir
de estratégias políticas delineadas pelo teórico marxista Antônio Gramsci na
Década de 1930. Segundo Gramsci, uma vez que a estratégia da revolução
socialista e da tomada do poder pela força se destina ao fracasso, os
socialistas deveriam conduzir sua luta política no nível da super-estrutura
ideológica, infiltrando-se nos diversos aparelhos ideológicos de estado e
promovendo suas ideias, conquistando os corações e mentes das pessoas,
principalmente dos jovens. Se considerarmos o predomínio crescente de opiniões
politicamente corretas nas universidades brasileiras podemos fazer uma
avaliação do grau de sucesso obtido.
O resultado deste processo, na minha
avaliação, é uma hegemonia de atitudes anticientíficas nas universidades
brasileiras atuais. O ambiente entre professores e alunos é majoritariamente
hostil à pesquisa científica, à testagem de hipótese e à busca de neutralidade
no conhecimento científico. Todo um castelo de construções teóricas foi construído,
procurando argumentar que não existe neutralidade na pesquisa, que interesses
econômicos e de dominação são os motivos verdadeiros subjacentes à pesquisa,
que a ciência é um aparelho ideológico do estado, um instrumento de
dominação e hegemonia e etc.
Este discurso é muito sedutor, principalmente
para os jovens. A juventude se caracteriza pela inquietação, rebeldia, pela
busca de alternativas ao status quo etc. Então é fácil compreender porque este
discurso encanta tanto a muitos jovens. Ainda mais em um país caracterizado
pelas brutais diferenças sociais, econômicas e culturais. O caminho da crítica
ideológica é sedutor também por outro motivo. A crítica ideológica é o caminho
do menor esforço. Não há necessidade de ralar, de malhar, de estudar
epistemologia, estatística, de aprender neuroanatomia, epidemiologia clinica,
matemática, programação de computadores, controle de variáveis etc. Basta se
apossar de um referencial teórico mínimo e sair por aí
"interpretando". O que por vezes ocorre é uma verdadeira
"interpretose". Uma saturação de interpretações baseadas em lugares
comuns, os quais são compartilhados por grupos descolados, não contribuindo em
nada para o avanço do conhecimento ou transformação da realidade.
Isto não ocorre apenas na psicologia não. Em
diversos cursos da área da saúde, p. ex., estão na moda atualmente os chamados
estudos qualitativos. Nestes estudos, o objetivo do "pesquisador" não
é testar uma hipótese científica sobre relações de causa e efeito entre
variáveis, mas conhecer a opinião de um determinado grupo alvo sobre sua
experiência de vida. Obviamente, que isto é interessante por si só. Mas
contribui muito pouco, p. ex., para o conhecimento dos fatores de risco,
mecanismos causais, prognóstico, eficácia de tratamentos, etc. Ou seja, a
capacidade deste tipo de estudos de informar políticas públicas é muito
reduzida. No máximo o gestor público fica informado de que como uma dada
política será percebida por determinado grupo alvo. Isto é importante, mas não
basta. A questão é que a pesquisa qualitativa/interpretativa constitui um
delineamento muito fraco do ponto de vista da sua capacidade de generalização
dos dados. Cria-se então uma situação paradoxal de uma "ciência do
particular". Ou seja, uma pesquisa cujo objetivo é reconstruir a
experiência de um determinado grupo em uma dada situação. E não uma pesquisa
cujos resultados possam ser generalizados de um contexto para outro, tendo
potencial, portanto, para informar politicas públicas. Trata-se de uma espécie
de narcisismo intelectual, que cultiva um discurso hermético, acessível apenas
aos iniciados.
Um grupo de colegas, docentes de processos
psicológicos básicos está muito preocupado com esta questão e tem promovido
encontros e grupos de trabalhos com o intuito de melhorar nossa capacidade
didática enquanto professores de psicologia geral, métodos quantitativos,
psicologia experimental, psicobiologia, neuropsicologia etc. Algumas
iniciativas tem sido mesmo brilhantes, trazendo benefícios enormes para o
ensino de processos básicos. Mas apenas melhorar a nossa eficiência técnica
pedagógica não basta. É preciso também trabalhar politicamente. E acho
que isto é o que está sendo feito também no Brasil, no âmbito deste movimento
pelo ensino dos processos psicológicos básicos. Mas a missão é muito difícil.
Uma estratégia, por exemplo, é infiltrar-se no ensino das disciplinas do
primeiro semestre de psicologia. Eu já fiz. Já desenvolvi por três semestres um
projeto de ensino de métodos quantitativos com a turma do primeiro período
da graduação. O projeto foi um sucesso. Mas, no quinto período, quanto fui dar
aulas para estas mesmas turmas sobre psicologia cognitiva, elas não apenas
tinham esquecido o que haviam aprendido, mas tinham perdido totalmente o
interesse pela psicologia experimental, tendo por vezes desenvolvido uma atitude
hostil em relação à ciência.
Vou encerrar a resposta a esta pergunta
comentando sobre um paradoxo e contrastando o ambiente intelectual brasileiro
com o ambiente intelectual em outros países.
O paradoxo é o seguinte: Os mesmos grupos e
correntes que argumentam em favor da transformação da realidade, da aceitação e
convivência com as diferenças, pela diversidade etc. e tal, são justamente
aqueles que na academia tentam eliminar as formas rivais de pensando de
maneiras por vezes abjetas, incluindo perseguições, humilhações e
desmoralização de colegas, como tantas vezes já tive oportunidade de
testemunhar. O paradoxo aparente é o fato de as mesmas pessoas que argumentam
contra o preconceito e pela diversidade comportarem-se de forma hegemônica em
relação aos que divergem do seu pensamento. Parece que eles propugnam um tipo
bem específico de diversidade, uma diversidade enviesada, abrangendo apenas um
segmento do espectro de opções possíveis. Isto leva a uma forma de pensamento
dicotômico, de nós contra eles, de luta da forças do bem e do
"progresso" contra as forças da reação, do mal. Mas o paradoxo é
apenas aparente, desaparecendo quando lembramos que somos todos seres humanos e
que as associações entre conspecíficos são reguladas de modos bastante típicos,
os quais são extensivamente investigados pela psicologia social.
A última questão diz respeito à comparação do
panorama intelectual brasileiro e internacional. O nível dos debates no Brasil
é muito baixo, muito ideologizado, contrastando com o que se observa em
congressos internacionais e em instituições universitárias de outros países.
Nos países de língua alemã, p. ex., o curriculum de graduação em psicologia
pode compreende até uma dúzia de disciplinas relacionadas a métodos
quantitativos, tais como estatística, programação, psicometria, metodologia
experimental. O aluno sai do curso de graduação com uma base matemática e
metodológica que foge ao alcance da imaginação dos nossos estudantes e
professores. A psicologia é concebida como uma ciência e os seus conceitos e
métodos precisam ser validados através do teste de hipóteses. Nestes países os
alunos de psicologia mal ouvem falar, p. ex., em psicanálise. A psicanálise
existe, mas é uma forma de terapia ou auto-conhecimento que é aprendida fora
dos cursos de psicologia. A psicanálise é cultivada nas associações
psicanalíticas e a formação em psicanálise é feita na pós-graduação pelos
poucos indivíduos que se interessam pelo assunto.
Já na Itália a influência da psicanálise é
maior. Mesmo assim a psicologia e neurociência cognitivas são muito fortes.
Fico pensando assim: se algum curso de direito aqui no Brasil quisesse oferecer
uma disciplina de psicologia para seus graduandos a probabilidade maior é que o
curso fosse de psicanállse. Em Bolonha, por outro lado, os alunos de direito
fazem uma disciplina de psicologia cognitiva.
Estas diferenças fazem parte de um contexto
maior, caracterizado pelo isolamento intelectual em que vivemos aqui no Brasil.
Durante décadas, p. ex., não podíamos importar computadores e era a maior
dificuldade para importar livros. Quando eu me formei, há 30 anos atrás, era
muito raro que os alunos brasileiros de graduação fossem ao exterior. A coisa
mudou. Cada vez mais nossos alunos fazem intercâmbio e têm contato com outros
ambientes intelectuais. Uma aluna de graduação que estava fazendo intercâmbio
na Universidade de Leeds me escreveu certa vez que somente naquela ocasião ela
tinha se dado conta do significado que os meus ensinamentos tinham, de como
apesar de parecer um peixe fora d'água aqui no Brasil as coisas que eu ensino
têm muito mais a ver com o que pessoal pensa lá fora.
Eu não tenho esperança de que isto possa mudar
de uma hora para outra. Mas, por vezes me surpreendo. As transformações podem
ocorrer de forma muito rápida. Considero que a minha principal missão como
docente é formar profissionais, pesquisadores e docentes comprometidos com uma
prática científica baseada em evidências e com um conceito de psicologia
enquanto ciência natural. É claro que esta perspectiva não é a única. Nem tenho
pretensões de que ela seja necessariamente a melhor. Isto depende muito dos
objetivos que se tem. Mas acho que a perspectiva da psicologia enquanto ciência
natural tem o seu lugar ao Sol, cativando um número pequeno, mas crescente de
alunos talentosos e futuros profissionais muito promissores.
Qual foi o melhor
conselho que você já recebeu?
Quando eu conclui a residência médica em
neurologia e neuropediatra fui procurar a chefe do serviço onde eu havia feito
minha formação. Eu disse então para esta senhora, uma neuropediatra muito
importante, que tinha um interesse enorme em trabalhar com neuropsicologia. Ela
então me aconselhou a trabalhar bastante, a aprofundar os meus estudos. Com
isto, disse ela, eu viria a ser um "profissional com perícia reconhecida
na área de neuropsicologia". Após ouvir os seus conselhos eu fui procurar
um outro serviço de neurologia, no qual tivesse mais oportunidades para
desenvolver meus interesses como neuropsicólogo. Fui procurar o Prof. Jaderson
Costa da Costa no Hospital da PUCRS, com quem trabalhei por cinco anos e
completei minha formação. Desde então eu tenho trabalhado e estudado muito
sobre neuropsicologia. E, como havia previsto a minha ex-professora, acabei me
tornando reconhecido na área. Não é que ela tinha razão? Acho que foi um dos
melhores conselhos que eu já recebi na vida.
Meu pai, por outro lado, teve uma atitude muito
diferente em relação a conselhos. No seu leito de morte, o Rubén Haase falou
assim pra mim e para o meu irmão: "Não adianta nada eu querer dar qualquer
conselho pra vocês. Não tenho nada pra dizer. No final vocês vão fazer mesmo do
jeito que bem entenderem". Foi o que eu e o meu irmão fizemos. Foi, sem
dúvida, o melhor conselho que eu já recebi. Penso há anos no que ele quis dizer
com isto. Meu pai era um sábio, um verdadeiro oráculo. Botou a pulga atrás da
minha orelha e me estimulou a fazer do jeito que eu bem entendesse. Obviamente,
sempre fiquei pensando se este é o jeito certo. Se existe um jeito certo. E se
ele descobriu, por que não quis me contar? Hoje sou pai de três adolescentes e
aprendi que a sabedoria não se transmite via oral.
Como é ser um
pesquisador em psicologia no Brasil?
Ser um pesquisador na
área de psicologia no Brasil é um privilégio. A psicologia cresce que dá gosto
no Brasil. Existe ainda uma hegemonia de tradições não-científicas na
psicologia brasileira. Mas a vertente científica atrai cada vez mais jovens
talentos. Vou discutir um pouco mais sobre a neuropsicologia, ressaltando
alguns avanços.
Um desenvolvimento foi
a eleição de uma nova diretoria na Sociedade Brasileira de Neuropsicologia, a
qual existe desde 1989. A atual diretoria, liderada pelo Prof. Leandro
Fernandes Malloy-Diniz da UFMG congrega colegas de nove estados brasileiros,
sendo bastante representativa da diversidade nacional. A agenda da SBNp para os
próximos anos contempla algumas questões importantes, tais como 1) consolidar a
neuropsicologia como uma área interdisciplinar de atuação profissional, não
restrita profissionais com apenas um tipo específico de formação, 2) participar
do debate sobre políticas públicas para crianças e jovens com transtornos de
comportamento e aprendizagem, enfatizando a validade da abordagem nosológica
nesta área, a natureza constitucional, neurobiológica e neurogenética de muitos
transtornos e a necessidade de formulação de políticas públicas para
atendimento multidisciplinar, principalmente da população carente, 3)
desenvolvimento de critérios de qualificação e certificação profissional na
área de neuropsicologia.
Vou discutir um pouco
sobre cada um destes pontos, mas antes gostaria de mencionar a criação do IBNeC
(Instituto de Neuropsicologia e Comportamento), ocorrida há três anos atrás por
iniciativa do Prof. J. Landeira-Fernández da PUC-RJ. Como a SBNp, o IBNeC
também é uma associação de caráter multiprofissional, voltada para o desenvolvimento
da neuropsicologia no Brasil. Mas acho que o IBNeC nasceu com uma preocupação
muito específica de articular uma conexão entre a neuropsicologia, mais voltada
para a clínica, e pesquisa psicobiológica básica na área do comportamento
humano e animal.
A atuação destas
entidades, bem como o surgimento de periódicos científicos em inglês, tais como
Psychology & Neuroscience, ligada ao IBNeC, Dementia &
Neuropsycholoogia, ligada à Academia Brasileira de Neurologia, junto com a
reativação da série Temas em Neuropsicologia da SBNp, estão permitindo que os
neuropsicólogos tenham canais de comunicação para divulgar e debater os
resultados de suas pesquisas, quanto discutir aquela ampla agenda relacionada
ao exercício profissional e às políticas públicas.
Vou discutir agora os
três tópicos da agenda da SBNp, os quais mencionei anteriormente, sem que a
minha opinião necessariamente reflita aquela da Sociedade. Em primeiro lugar
vou falar sobre a questão da interdisciplinaridade. O Conselho Federal de
Psicologia (CFP) tem defendido uma posição restritiva quanto ao uso de testes
neuropsicológicos por profissionais de outras áreas, considerando que a
avaliação de funções mentais é uma prerrogativa exclusiva de profissionais com
formação em neuropsicologia. Eu acredito que esta posição do CFP é
equivocada, sendo lesiva aos interesses
dos clientes dos serviços neuropsicológicos e aos próprios psicólogos.
A formação em
neuropsicologia é necessariamente interdisciplinar, ocorrendo no nível da
pós-graduação. Nenhum curso de graduação capacita os seus formandos a trabalhar
com os conceitos e métodos empregados pela neuropsicologia, quais sejam,
estrutura e função do cérebro, clinica das doenças neurológicas e
psiquiátricas, psicometria, correlação estrutura-função, desenvolvimento humano
etc. etc. O cerne da neuropsicologia diz respeito à correlação anátomo-clinica
ou estrutura-função. A abordagem neuropsicológica consiste em procurar
identificar relações sistemáticas entre alterações comportamentais e cognitivas
e a integridade funcional de determinados sistemas cerebrais. Ninguém aprende
isto na graduação de medicina, psicologia, fonoaudiologia etc. A formação é
árdua, pós-graduada e interdisciplinar, abrangendo conhecimentos factuais e
procedimentais oriundos de diversas áreas.
Um diagnóstico ou
avaliação neuropsicológico é um processo muito distinto de uma avaliação
psicológica. O psicólogo trabalha com construtos psicológicos, tais como
inteligência, personalidade, auto-estima, auto-eficácia, mecanismos de
reforçamento, etc. O neuropsicológico, independentemente da sua formação,
trabalha com construtos neuropsicológicos, ou seja, com correlações
anátomo-clinicas, procurando associar padrões de alterações comportamentais ou
cognitivas com alterações funcionais no cérebro. Isto é muito diferente. Ninguém aprende isto no curso de
psicologia. Não tem como um profissional de psicologia aprender isto sem
necessariamente trabalhar em uma equipe interdisciplinar, na qual tenha
oportunidade, por exemplo, de conviver e aprende com médicos e profissionais de
outras áreas.
O trabalho
interdisciplinar em neuropsicologia é também um preceito ético. Indivíduos com problemas neuropsiquiátricos
crônicos apresentam necessidades complexas de saúde, as quais demandam a atuação
de profissionais de diferentes áreas. A tendência dos profissionais é atuar de
forma multidisciplinar. Ou seja, são definidos objetivos em comum, mas cada
profissional trabalha de forma independente. Isto leva a uma fragmentação dos
esforços de intervenção, a uma perda da perspectiva de conjunto quanto aos
problemas do cliente e da família e a uma reduplicação de esforços.
A avaliação
neuropsicológica realizada por psicólogos deve ser reservada a situações mais
específicas, nas quais se necessite de uma avaliação mais abrangente ou mais
aprofundada de determinados aspectos. Todos os profissionais têm não apenas o
direito, mas o dever, de avaliar as funções mentais dos seus pacientes. E os profissionais de saúde têm o dever de
utilizar instrumentos diagnósticos e terapêuticos validados de acordo com
requisitos técnicos mínimos. Eu gosto de ilustrar isto com o seguinte exemplo.
Sabe-se que a memória de trabalho fonológica desempenha um papel importante em
algumas formas de afasia de condução. Suponha-se então uma fonoaudióloga que
esteja atendendo um paciente com afasia de condução e precisa avaliar a memória
de trabalho como parte do processo diagnóstico e de acompanhamento da
intervenção. Acho que ela não precisa ser obrigada a encaminhar para uma psicóloga
para fazer isto. Isto é desumano com o paciente, com a família, implicando em
perda de tempo e aumento dos custos. De mais a mais, quantas psicólogas existem
que sabem o que é uma afasia e têm experiência em avaliar pacientes afásicos? A
reserva de mercado não é aceitável nem do ponto de vista ético, nem do ponto de
vista prático, operacional.
O segundo ponto diz
respeito às políticas públicas quanto ao atendimento de crianças com
dificuldades de aprendizagem e/ou problemas de comportamento. Há um movimento,
apoiado inclusive por órgãos de classe da psicologia, contra uma suposta
“medicalização” do ensino. Ou seja, contra o uso de procedimentos diagnósticos
e categorias nosológicas tais como hiperatividade, dislexia e discalculia na
área de educação. O temor dos ativistas políticos que se envolvem em tal tipo
de campanha é de que as crianças e suas famílias sejam responsabilizadas e estigmatizadas
pelas dificuldades apresentadas. Dificuldades estas que são muitas vezes
agravadas se não causadas por problemas sociais.
A perspectiva da neuropsicologia é divergente
destas campanhas contra a suposta “medicalização” do ensino. Na perspectiva
neuropsicológica existem evidências científicas sólidas sustentando a validade
de categorias nosológicas tais como dislexia, discalculia e hiperatividade.
Estas condições correspondem a variações constitucionais do perfil de
desempenho em habilidades específicas, as quais são de origem neurogenética,
são persistentes, altamente incapacitantes e susceptíveis de melhoria com intervenção
apropriada.
O argumento da
estigmatização não se sustenta, uma vez que estas crianças e jovens já são
estigmatizadas de qualquer maneira, sendo chamadas de “burras”, “lerdas” ou
“preguiçosas”. Nestes casos é o diagnóstico que possibilita ao individuo a
reconstrução do seu auto-conceito em termos mais favoráveis. O diagnóstico
permite ao individuo e à família o acesso a uma explicação cientificamente
fundamentada e socialmente aceitável quanto à natureza das dificuldades.
Explicação esta que é isenta de juízos de cunho moral, permitindo ao indivíduo
conviver e aceitar suas dificuldades, desenvolvendo estratégias para superá-las
com o auxílio de profissionais.
A consequência deste
tipo de movimentação contra a suposta “medicalização” do ensino tem como
principal consequência impedir que as pessoas de classes sociais menos
favorecidas tenham acesso a serviços multiprofissionais para dificuldades de
aprendizagem e de comportamento. As famílias de classe média, inclusive da
classe média ascendente, já estão procurando tais serviços em clinicas
particulares. A ausência de uma política publica para este setor coloca os mais
pobres em uma situação de dupla desvantagem, duplamente prejudicados, por terem
problemas e por serem pobres, não tendo acesso aos serviços necessários.
O terceiro tópico diz
respeito à qualificação profissional em neuropsicologia. Não existe qualquer
tipo de regulamentação. A maioria das pessoas faz algum tipo de curso de
especialização em neuropsicologia, com até 400 horas de duração e quase nenhuma
formação e supervisão clinica específica. Que eu saiba não existe nenhum
programa de programação strictu sensu
especificamente voltado para a neuropsicologia. Mesmo assim é crescente o
número de jovens doutores e professores que atuam na área, indicando que a
mesma está crescendo.
Há a necessidade então
de estabelecer diretrizes para a formação e estabelecer parâmetros mínimos para
a formação e atuação profissional. Uma distorção que se observa com frequência
demasiada no Brasil diz respeito a profissionais, com formais originais as mais
diversas, que fazem um curso de especialização em neuropsicologia a aprendem a
mecânica da aplicação de testes, não tendo qualquer formação mais sólida em
neurologia, psicopatologia, desenvolvimento e, até mesmo, psicometria. Muitos
relatórios neuropsicológicos que os pacientes trazem consigo revelam que a
avaliação foi conduzida de forma mecânica, consistindo na aplicação de uma
bateria de testes e levantamento de escores, sem que o profissional tenha
definido as hipóteses diagnósticas que estavam sendo testadas.
Teste significa teste
de hipótese. Teste é um procedimento padronizado de observação e mensuração do
comportamento, o qual é empregado em neuropsicologia para testar a hipótese de
que um dado processo cognitivo ou sistema cerebral esteja comprometido. Não tem
como realizar um diagnóstico em neuropsicologia apenas a partir da aplicação
mecânica de uma bateria rotineira de testes. Há necessidade de reflexão, de
geração e levantamento de hipóteses. E a capacitação para realizar este teste
de hipóteses não é adquirida em nenhum curso de graduação, muito menos em
qualquer curso de especialização.
O IBNeC está
contribuindo para resolver estas distorções, na medida em que aproxima a
neuropsicologia das neurociências. Por outro lado, a SBNp está implantando um
sistema de certificação profissional. Através de exames realizados periodicamente,
consistindo da análise de títulos, prova de conhecimentos teóricos e prova
clinica, prática, os profissionais serão qualificados e certificados conforme o
seu nível de formação e experiência. Através desta qualificação os empregadores,
pacientes e famílias usufruirão de indicadores quanto à qualificação do
profissional.
Finalmente, farei um
comentário sobre a pesquisa científica de um modo geral. No Brasil, o
diferencial de pesquisa foi a criação do Portal de Periódicos da CAPES. O
Portal da CAPES nos colocou no circuito. Outros avanços importantes ocorridos
nos últimos anos dizem respeito à maior disponibilidade de financiamento para a
pesquisa e o reconhecimento por parte das autoridades governamentais de que é
importante aumentar a participação brasileira no panorama científico
internacional, quer seja através de publicações, intercâmbio de alunos de
graduação, bolsas de pós-graduação, apoio à participação em congressos, etc. O
Brasil está começando a fazer presença no cenário internacional. Outro ponto é
a origem do financiamento. Quase 100% da pesquisa no Brasil é financiada pelo
poder público. Algumas entidades de fomento, tais como a FAPEMIG e FAPESP estão
fazendo um esforço grande no sentido de aumentar a participação do setor
privado no financiamento de pesquisa. Acho que as perspectivas são muito
promissoras e fico feliz em poder testemunhar este crescimento.
Você recomenda alguma
leitura para quem se interessa pela sua área?
Faço algumas recomendações aos noviços: 1)
Prefiram ler artigos originais do que livros. Livros e artigos de revisão
somente servem para dar uma visão geral. A visão de conjunto é importante. Mas
o progresso é relatado em um ritmo alucinante nos artigos originais. Aprendam a
destrinchar a gramática textual IMRAD dos artigos originais: Introduction,
Methos, Results and Discussion; 2) Prefiram ler em inglês do que em português.
Se o autor se deu ao trabalho de escrever em inglês é porque ele considera que
o seu trabalho merecer ser conhecido por um público universal. Ou seja, é de
qualidade melhor. A literatura científica em outras línguas está sempre
atrasada; 3) Aprendam a ser auto-didatas. Quem não desenvolve habilidades
auto-didáticas fica condenado a sempre comer pela mão dos outros.
4 comentários:
Tive o privilégio de conhecer o trabalho do prof. Vitor e do LND em dezembro passado e voltei admirada. Além do trabalho maravilhoso em pesquisa, ele também consegue coordenar um importante trabalho aplicado, promovendo treinamento de pais, reabilitação etc., serviços importantíssimos para a comunidade e sem os quais seria no mínimo sem sentido o avanço da Neuropsicologia. Além da figura dele, o laboratório também é cheio de gente muito competente e interessada, que me recebeu extremamente bem, tenho só a agradecer a todo mundo lá.
E é no mínimo paradoxal que um dos maiores neuropsicólogos que temos seja um médico, na verdade. Ele se interessou pelo campo, ao contrário de muitos, apesar de todas as dificuldades em transitar por ele. Pra mim, é reflexo de o quanto a Psicologia ainda se interessa pouco por ciência.
Enfim, Marcus, parabéns pela entrevista com o grande prof. Vitor! (Grande em todos os sentidos, ele é enorme, deve ter uns 2 metros, tipo um Papai Noel da neuropsicologia, a maior figura. hahaha)
Pois é Aline, o André e eu adoramos entrevistar o Vitor. Foi realmente bem esclarecedor e - como é possível ver pelo tamanho da entrevista - ele não se poupou, escreveu muito mesmo para deixar suas ideias bem claras para qualquer um que vier a ler este texto.
Felizmente posso dizer que quando se trata da neuropsicologia o foco é bem parecido com a medicina em relação aos trabalhos com 'relevância social'. Aqui na Unifesp mesmo nenhum trabalho ocorre puramente visando a publicação e obtenção de títulos, existe uma troca muito interessante com a sociedade e convênios particulares e isso faz o pesquisador e os alunos se sentirem muito mais recompensados por sua dedicação. Se quiser conhecer mais a proposta da pós da Unifesp, aconselho olhar esses dois sites: http://www.afip.com.br/Principal.asp e http://www.posgrad.epm.br/psicobio/
E para ser sincero, eu entendo plenamente um médico querer fazer a ciência psicológica (é até comum e a gente sabe que a ciência do comportamento é muito boa), eu só não consigo aceitar é que tantos psicólogos ainda morrem de medo de seguir esse caminho.
Ótima entrevista e parabéns pelo blog.
Valeu, Arthur. Volte sempre.
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