“Você já foi à Bahia,
nega? Não? Então vá.”
Dorival Caymmi
Recentemente me mudei da
minha cidade natal, Salvador, para São Paulo, onde iniciei o mestrado. Sair de
casa sempre é difícil, mas acredito que reservo à minha cidade natal uma
espécie de apreço que dificilmente poderia ser considerado normal: por anos não
consegui me manter muito mais do que duas semanas distante de Salvador. A cada
viagem, a contagem regressiva logo se iniciava e dentro de pouco tempo meu
humor estaria completamente mudado, irritadiço, impaciente, saudoso. Todavia, a
todo o momento, quando estava em terras soteropolitanas desejava ir embora e
guardava antipatia a quase todos os fenômenos particulares que ela reserva
àqueles que lá habitam, dos vizinhos e carros de gostos musicais duvidosos em
uma altura ensurdecedora, ao trânsito agressivo e o desleixo provinciano com os
bairros históricos e culturais que se tornou retrato de más administrações
sucessivas da cidade.
O baiano, e
particularmente o soteropolitano, tem uma coisa engraçada. Lá é possível
encontrar pessoas que vão dizer com toda vontade, “Salvador é uma cidade
terrível, mas não consigo ficar longe dela”. E é essa relação de amor semelhante
ao fraternal – um pouco exagerado, eu sei – um amor que se permite falar mal,
reclamar, mas que continua sendo amor.
Muito além da cidade
descrita por Jorge Amado, Salvador pouco tem em suas ruas a poesia de outrora,
é possível ser soteropolitano e não conhecer os pontos mais ilustrados pelas
linhas das obras dele. Da mesma forma, parece que as palavras ‘moqueca’,
‘cachaça’, ‘orixá’ e ‘capoeira’ não caberiam em lugar melhor e foram
especialmente concebidas para encaixar no sotaque daquele que nasceu nas terras
banhadas pela Baía de Todos os Santos (e depois de algum tempo em São Paulo,
começo a perceber que ‘farinha’ também). A Roma Negra é ainda uma cidade
maravilhosa, e os versos de Caymmi, que confessavam – todavia, sem muito alarde
- estar com saudade de Salvador, ainda são atuais, ao menos para mim.
Por mais que alguns
fatores ainda me sejam incômodos na minha cidade natal, há uma beleza nas ondas
do extenso litoral ou do sol nascente que desponta no horizonte da marina, bem
próximo ao Mercado Modelo e Elevador Lacerda, que me permite lembrar com
carinho de toda a beleza desta cidade. E, provavelmente, maquiando as
impressões negativas, a memória se distorce para revelar um local de onde só as
melhores recordações podem ser relembradas. Recordações de lugares, recordações
de pessoas. A saudade, palavra que adoramos deixar claro fazer parte de um
grupo seleto de idiomas, dentre estes, a língua portuguesa, poderia ser
considerada uma expressão característica daquele que passou por Salvador e
soteropolitanos e almeja desesperadamente o retorno.
Poucos estudos abordam o
tópico “saudade”, mas é possível encontrar aqueles que estudam a “saudade de
casa” (homesickness) e sua relação
com diversos fatores psicológicos. Essa saudade nada mais é do que uma
confluência de reações cognitivas e emocionais advindas da separação do lar.
Tal saudade gera uma série de intercorrências que podem ser correlacionadas
negativamente com a idade e a experiência de separação que a pessoa já possui
(ou seja, todo aquele que, como eu, nunca suportou tal separação, estará mais
propenso a desenvolver os sintomas principais dessa saudade extrema). Os
problemas que acabam por surgir dessa saudade estão associados com sintomas
depressivos e internalização de problemas comportamentais.
Quando com crianças,
percebeu-se que a intensidade da saudade aumenta com o tempo, reduzindo apenas
momentos antes do retorno para casa, mas o interessante é que os efeitos da
saudade de casa iniciam mesmo meses antes da separação. Sendo assim, essa
‘homesickness’ excessiva pode ser considerada diferente de um transtorno gerado
apenas pela separação – que poderia considerar uma separação pouco traumática
uma solução – pois os efeitos já aparecem com a iminência da despedida.
Aparentemente, mulheres e meninas tendem a sentir os efeitos da saudade com
muito mais intensidade do que homens e meninos, o que pode até não ser
cientificamente conclusivo, mas pelo menos é poético. As ruminações provenientes
dessa distância de casa e uma possível solidão acarretada pelo distanciamento do
indivíduo vindo a partir destas ruminações podem resultar mesmo em uma
depressão, ou pior, a vontade de escrever textos para blogs.
A ‘saudade de casa’ tende
a ser considerada um “mini-luto” pela maioria dos estudos. Mas tendo em vista
que a ‘saudade de casa’ talvez esteja em um nível aquém se comparada com a
saudade que todo aquele que tem a língua portuguesa como idioma nativo entende,
mas não sabe explicar. Aquela saudade que você sabe a diferença, não é só a
saudade de um local, mas de pessoas, de momentos, mas não só de pessoas e
momentos, é algo mais. A saudade seja talvez um dos tópicos que só os
pesquisadores brasileiros poderão se aprofundar e entender qualitativamente melhor.
Levando em consideração o que foi aqui escrito, se as evidências nos permitem considerar a ‘saudade de casa’ como uma
espécie de luto, acredito que a saudade de Salvador e das pessoas que
ficam é um pouco mais, é quase a morte em si.
Referências:
Stroebe M, van Vliet T, Hewstone M, & Willis H (2002). Homesickness among students in two cultures: antecedents and consequences. British journal of psychology (London, England : 1953), 93 (Pt 2), 147-68 PMID: 12031144
Thurber CA (1999). The phenomenology of homesickness in boys. Journal of abnormal child psychology, 27 (2), 125-39 PMID: 10400059
Van Tilburg MA, Vingerhoets AJ, & Van Heck GL (1996). Homesickness: a review of the literature. Psychological medicine, 26 (5), 899-912 PMID: 8878324
7 comentários:
Quase a morte em si? uau, nos sentimos importantes agora hehe
Sobe homesickness, ela é muito estudada nos EUA porque a maioria dos estudantes sai de casa e vai morar em outra cidade, geralmente na residencia da universidade que vai fazer quando termina o ensino médio. Nao conheço muitos estudos disso na literatura do Brasil, que tem uma configuracao um pouco diferente.
Interessantes também sao os estudos feitos sobre a "síndrome do ninho vazio" (empty nest syndrome), sobre a situacao das mães (e pais)quando os filhos e filhas saem de casa.
Sobre Salvador, eu sinto saudade de algumas coisas de quando estou fora, mas principalmente de pessoas. Como a maior parte dos meus afetos está se mudando ou se mudou dessa cidade, essa saudade vem diminuindo com o tempo.Claro que, como voce mesmo disse, a gente tende a só lembrar das coisas boas quando está fora, e isso vale pra pessoas também (começa a morrer de saudade de quem a gente nao aguenta estar vendo todo dia).
Como diriam que diria Caetano, "achei lindo" seu post :)
Exatamente, os estudos em homesickness são em maioria dos EUA, mas além disso do colégio, tem estudos utilizando crianças que saem de abrigos e orfanatos.
Já tinha até ouvido falar sobre a síndrome do ninho vazio, mas não sabia que era algo sério, achava que era só um nome, vou dar uma pesquisada.
E quanto a Salvador, tou com saudade de tudo e todos.. TUDO E TODOS! O negócio tá sério. haha.
esse texto é vc, marcola! vi vc claramente falando "(...), ahh, mas é poético, po" huauhauhauhau
grande abraço!
Paulinho
Discutir o saudosismo em perícia científica,mas antes capturar o leitor pela reflexão de um sentimento que é pessoal, e também geral, e também falar com originalide, profundidade e consistência. Mostra o quanto, a ciência ganha, com advento de Marquinhos neste campo, que orgulho ter uma amigo desse.
Paulinho e Elder, muito obrigado pelos elogios, fico feliz que o texto alcançou as pessoas que deveria alcançar. Abraços.
"Mostra o quanto, a ciência ganha, com advento de Marquinhos neste campo, que orgulho ter uma amigo desse."
Que coisa linda, Elder. Essa é pra emoldurar :)
Velho, muito bala!! É difícil ver tanta sinceridade num "mimimi"... rs
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